Saneamento canábico

De água, ar, fotográfico e social. Para cada um desses tipos, além de outros, existem filtros. Definidos pelo dicionário Priberam como “aquilo que deixa passar apenas parte de algo”, esses dispositivos estão presentes no cotidiano dos brasileiros em diversas formas e aplicações. Entre as mais importantes delas estão os utilizados na administração de resíduos químicos, fundamentais para manutenção da saúde pública moderna. Na Universidade de Brasília (UnB), Fillipe de Oliveira desenvolve projeto de doutorado inovador ao avaliar a produção desses equipamentos com uso de biocarbono à base de cannabis, trabalho que se destaca por encontrar alternativa eficaz e sustentável aos modelos de aparelhos atuais.

Como começou

Oliveira é graduado em engenharia de bioprocessos pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) e atua na área farmacêutica há dez anos. Em 2017, veio a Brasília por questões médicas, mas encantou-se pela cidade e decidiu continuar carreira acadêmica com mestrado na UnB. Orientado pelas professoras Ana Cristi Dias e Fernanda Vasconcelos, lidera grupo de nove integrantes, entre alunos de graduação, estudantes em mestrado, doutorandos e as docentes, todos em busca de melhorias no tratamento de resíduos químicos.

Desde fevereiro de 2025, grupo conduz estudos para avaliar criação de biofiltros a partir do biochar — produto da queima de um objeto composto por carbono em um ambiente sem oxigênio — feito com cânhamo, um tipo de cannabis. “Percebemos um aumento no descarte de fármacos em leitos de rios, e daí surgiu a ideia de realizar a descontaminação deles atrelada ao desejo de criar um projeto amplo e que promova o uso de materiais normalmente rejeitados pela indústria”, afirmou o líder da pesquisa.

Para além dos biofiltros, dentro do Instituto de Química (IQ), professora Dias coordena vários outros projetos que envolvem cannabis para diferentes finalidades. Ela relatou que foi motivada após prescrição médica para fazer uso de medicamentos canabinoides. “Trabalhamos de modo a suprir a demanda por pesquisa das associações”, apontou.

Essa iniciativa faz parte do conjunto de ações apoiadas pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF). No entanto, como capital da entidade é dividido entre vários trabalhos, integrantes consideram financiamento atual insuficiente para sustentar o estudo por completo. Para contornar esse problema, Oliveira recorre a incentivos provenientes de atuação na indústria farmacêutica.

Para fazer um biofiltro

Neste projeto, cultivo e fornecimento do biocarbono é feito pelo mestrando Lucas Santana, proprietário da C3, associação de pesquisadores e pacientes com manuseio autorizado da planta. Após colheita, a cannabis é separada conforme as partes atribuídas à produção de biochar. Em seguida, em forno industrial sem presença de oxigênio, cânhamo é carbonizado para que se possa usufruir da propriedade filtrante que possui.

“Depois disso colocamos o carvão em compartimento de porosidade adequada e então vedamos com uma membrana para o acoplar a saídas de efluentes”, contou Dias. Estudos posteriores a respeito da eficácia e custo-benefício do produto são feitos pelo restante da equipe nos laboratórios do IQ da UnB.

Descartes e problemas

Grandes indústrias da farmácia se firmaram no século 20 após a descoberta da penicilina em 1928 por Alexander Fleming. Produção de medicamentos em larga escala também explicitou o alto índice de poluentes gerados no processo. Para contê-los, surgiram filtros produzidos com plásticos como polipropileno e poliéster. O uso desses materiais acarreta outro resíduo separado de forma problemática, o plástico.

“É necessário falar mais quanto a educação ambiental. Conscientizar o público é indispensável para podermos expor os danos causados pelo descarte de medicamentos e embalagens”, pontuou Giuliana Morrone, jornalista especializada em governança socioambiental (ESG, do inglês environmental social governance).

Cânhamo

​É uma variedade da Cannabis sativa caracterizada pelo baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC), composto responsável pelos efeitos psicoativos da planta. Apesar de não possuir os mesmos riscos associados a outras classes da cannabis, o plantio continua proibido por lei, com poucas liberdades garantidas a associações autorizadas. Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Luiz Paulo Teixeira, declarou ser favorável à descriminalização: “Não faz sentido que um país com tamanho potencial agrícola quanto o Brasil prefira importar esse produto a cultivá-lo”.

Além de poder ser transformado em biochar, cânhamo tem utilidade documentada em aplicações como auxiliar no processo digestivo, ingrediente culinário e matéria-prima na fabricação de tecidos. “Somado a isso, a criação não exige grandes lotes. É oportunidade de crescimento para área de saúde e agricultura familiar”, reiterou Teixeira.​

Objetivos e impacto

Embora em estágio inicial, o grupo acredita no sucesso da avaliação dos biofiltros. Segundo Oliveira, “visamos ação com materiais acessíveis e de baixo custo para substituir os equipamentos atuais. Garanto que, com essa equipe de profissionais ao meu lado, os métodos utilizados serão eficazes e, caso tudo corra bem, planejaremos estabelecer patente no processo e mirar na implementação dele em instalações que não possuem capacidade de realizar tratamento adequado desses efluentes”.

Felipe Roma, aluno do terceiro semestre de química, conheceu o trabalho por meio de Dias e desempenha papel de auxiliar na pesquisa. Para ele, além dos resultados no meio científico, iniciativa pode ser peça-chave para reduzir estigma social em torno do uso da cannabis: “Os benefícios do nosso material são comprovados. Sem dúvidas esse é um grande passo para maior aceitação do tópico, afinal é uma das funções do campo da ciência. Se o público quer provas, vamos atrás delas”.

João Zamora, 19
Jornalismo
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