
Projeto Venom: fagos em ação
Em 2019, cerca de cinco milhões de pessoas no mundo morreram devido a infecções causadas por bactérias multirresistentes, segundo estudo estadunidense. Resistência Antimicrobiana (RAM) se dá em decorrência do uso excessivo e inadequado de medicamentos. Essa não eficácia nos tratamentos de doenças infecciosas comuns “resulta em doença prolongada, incapacidade e morte”, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que também aponta custo elevado e tempo prolongado de tratamento, devido à complexidade, como outros impactos negativos à sociedade.
Nesse cenário, Hugo Paes, professor de medicina na Universidade de Brasília (UnB), homem com mistura de sotaques, sempre em posse do chapéu de couro reto, blusa de gola polo e sapato apelidado por alunos da graduação de “sandálias de Jesus”, devido a semelhança com retratados em produções cinematográficas, afirma que: “A fagoterapia — utilização de bacteriófagos para tratar infecções bacterianas — é alternativa complementar aos antibióticos, de baixo custo e tecnologia, fácil de reproduzir e de rápida disseminação”. Fagos, abreviação do termo científico “bacteriófagos”, podem ser encontrados em qualquer ambiente com proliferação de bactérias, desde alimentos até solo, água, corpo humano e mais.
Ponto de partida
Em março de 2024 surgiu o projeto Venom 1, criado por Lorena Derengowski, professora com humor contagiante, que leciona biologia no Colégio Militar de Brasília (CMB), em conjunto com Paes e Ildinete Pereira, parte do quadro docente do curso de biologia da UnB. Pereira possibilitou que alunos do ensino médio realizassem experimentos de testagem de fagos em larvas, para verificar se estão contaminadas dentro dos laboratórios da Universidade.
“No início, eu queria apenas competir e ganhar o Desafio Global do Conhecimento (DGC) — feira de ciências do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) —, porém, os experimentos tomaram outro rumo e nos levaram mais longe”, comentou Derengowski. Para obter boa classificação, ela pensou em maneiras de realizar algo inovador e com potencial. Dessa forma, entrou em contato com docentes da UnB em busca de orientações.
A partir disso, Paes sugeriu realização do projeto de pesquisa e teste com bacteriófagos — vírus que infectam bactérias. O estudo era realizado com alunos da graduação, entretanto, o professor relatou que “interações com alunos em nível acadêmico demonstram que, havendo interesse e dedicação, um aluno de ensino médio pode se destacar tanto quanto o de graduação”.
Processo
Integrantes do projeto passaram a utilizar laboratório científico no Instituto de Biologia (IB) às quartas-feiras a partir das 14h e sem horário determinado para o fim dos experimentos, em busca de resultados significativos. Com auxílio do Hospital Universitário de Brasília (HUB), eles conseguiram cinco isolados clínicos — bactérias — para realizar separação dos bacteriófagos e iniciar testes. Com materiais disponíveis, coletados e isolados do esgoto hospitalar do HUB, iniciaram fase de experimentação, na qual foram testados quatro bacteriófagos em 38 isolados clínicos, processo realizado por meio da contaminação de larvas.
Ao decorrer da realização dos testes houve modificação no processo. Descobriram que um dos materiais fornecidos pelo HUB não correspondia a características também entregues por eles, portanto, foi necessário realizar novo sequenciamento genético e microscopia eletrônica para identificar a estrutura celular da bactéria, a fim de prosseguir de maneira correta com a pesquisa. Fernanda Wambier, integrante do Venom I, com vocabulário refinado e voz imponente, afirma que essa descoberta acarretou em atraso do trabalho, devido à retomada de processos iniciais, no entanto, para ela “foi uma virada que fortaleceu ainda mais o projeto”.
Portanto, apesar da interferência inicial, os estudantes conseguiram superar intercorrências e concluir o objetivo de avaliar o potencial dos fagos isolados de esgoto hospitalar, na infecção de diferentes bactérias, assim como caracterizar aqueles que têm como alvo cepas multirresistentes.
Repercussão e continuidade
Devido ao sucesso dos experimentos, integrantes do Venom — nome escolhido por conta da semelhança dos estudos, na visão dos idealizadores, com o personagem popular dos quadrinhos e cinema — o inscreveram na feira de ciências do CMB e classificaram-se em primeiro lugar. Em seguida, venceram o DGC e inscreveram-se no evento que promove criatividade aos estudantes, oferecido pelo Centro Universitário IESB, Eureka Day, o que resultou também no primeiro lugar na competição.
Como última etapa de premiações, concorreram na Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), realizada na Universidade de São Paulo (USP), em março de 2025, criada para incentivar inovação, empreendedorismo e cultura investigativa na educação brasileira, e finalizaram com prêmio de destaque da federação no evento.
Construção positiva a respeito do objeto pesquisado motivou professores envolvidos a dar continuidade. Em abril de 2025, deram início, de maneira oficial, ao Venom 2, que consiste na extensão e apoio ao antecessor, além da pesquisa voltada ao combate dos biofilmes — comunidades microbianas complexas aderidas a superfícies e envolvidas por uma matriz extracelular. Diferente do Venom 1, no qual os alunos foram selecionados pelos professores, na nova etapa, devido ao amplo interesse dos estudantes, foi necessário a realização de um concurso interno no CMB.
Manuela Bossonaro, aluna do colégio classificada para equipe, destaca: “Estar em iniciativa tão grandiosa, no ensino médio, é algo nunca imaginado por mim. No lado mais acadêmico, o projeto tem enorme valor clínico”. Além disso, Bossonaro afirmou que a possibilidade de contato direto com professores e estudantes da UnB durante o desenvolvimento da pesquisa é extraordinária.
Expectativas e conclusões
Paes compartilha desejo em identificar fagos contra bactérias de interesse médico, além da vontade em criar coleção local dessas espécies, as quais no futuro podem fazer diferença para algum paciente. Em contrapartida, Pereira diz que, para além dos objetivos científicos do projeto, outro ponto fundamental é a capacidade da UnB para ações de inserção social, o que possibilita iniciativas como Venom 1 e Venom 2. Segundo ela, essas são experiências de grande impacto para elevar a qualidade dos futuros alunos da instituição, bem como de próximos pesquisadores.
Wambier, por outro lado, pontua que sempre esteve interessada em pesquisas e ciência, desse modo, percebeu no Venom, oportunidade de aprender na prática aquilo que havia estudado e desenvolver soluções que fizessem diferença. “A minha experiência no projeto me ajudou, sem dúvidas, a passar na Yale University, nos EUA, onde planejo dar continuidade a pesquisas que gerem impacto na saúde pública”, pontuou a ex-integrante. Bossonaro reflete a importância do trabalho em equipe desempenhado na estrutura e desenvolvimento ao longo do percurso, para além dos objetivos acadêmicos, construir algo relevante em conjunto com outras pessoas interessadas em fazer a diferença é fundamental na percepção da estudante.
Para Derengowski, iniciativas como essa fomentam o protagonismo juvenil na ciência. Combinação entre apoio institucional, curiosidade e comprometimento garantem o sucesso de todas as etapas. Ademais, a continuidade do projeto inicial, com Venom 2, demonstra futuro promissor a ideia desenvolvida.

Yandra Martins, 18
Jornalismo
