
Mudanças nas relações
Cada cúpula entre países apresenta o mesmo retrato do mundo diplomático: apenas com olhar atento é possível distinguir a presença feminina em meio a ternos e gravatas. A superioridade numérica de mulheres no curso de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB) deveria sinalizar novo panorama. Mas, em ambiente masculinizado, estudantes dependem de iniciativas próprias para promover discussões de gênero.
Pela ausência do tema nas aulas, alunas de graduação e pós-graduação criaram, em 2017, o grupo Mulheres Acadêmicas em Relações Internacionais e Ativismo Social (Marias), que, além de pensar desigualdades de gênero, estabelece rede de apoio. “O diferencial é o espaço acolhedor para toda e qualquer mulher”, disse a ex-integrante do projeto Julia Machado. “Marias surge como estudo e extensão, mas também acolhimento”, complementou a professora Tchella Maso.
Na sala dividida com outra docente de relações internacionais, entre livros empilhados e luz fraca que atravessa as janelas, Maso — voz baixa, pausada e postura tranquila — reflete a respeito da importância do projeto do qual é uma das coordenadoras: “O que é ser mulher na Universidade? Como lidar com situações de assédio e violência? Entender a condição das mulheres na sociedade é essencial para as Marias”.
Funcionamento
O projeto está estruturado em grupos de trabalhos (GTs). Ao todo são cinco: institucional, gestão de pessoas, acadêmico, comunicação e coordenação.
Realizar relatórios em cada reunião e depois encaminhá-los para as coordenadoras Carolina Claro e Tchella Maso é atribuição do GT institucional. O acadêmico prepara bibliografia e temas dos encontros, que são realizados toda quinta-feira, durante o semestre letivo. A gestão de pessoas se preocupa com o bem-estar dos integrantes, enquanto a comunicação mantém ativas as redes sociais, Instagram, Facebook e LinkedIn. A coordenação conta com um integrante de cada GT para decisões rápidas e reestruturar o grupo, quando necessário.
Em cada reunião, que ocorre das 18h às 20h, de maneira presencial na UnB ou online, as integrantes debatem textos voltados à temática de gênero nas relações internacionais e ativismo social. Os encontros também recebem convidados especialistas, que contribuem com breves palestras a respeito dos assuntos selecionados. Outra atividade do projeto é o Cine Marias, no qual reflexões das estudantes partem de filmes assistidos.
Dificuldades
Apesar da proposta inclusiva, Luiza Cruz, ex-coordenadora de comunicação do projeto, afirmou ter encontrado resistência ao projeto na comunidade acadêmica. Ela se recorda de frase que escutou de uma amiga ao convidá-la para integrar o Marias. “Entre as lutas antirracista e feminista, sempre vou escolher a luta antirracista, porque foi a que menos me machucou.”
Para Cruz, a resposta evidencia frustração recorrente: o movimento feminista falha em acolher múltiplos recortes de mulheres que diz representar: “Por um tempo, o feminismo foi muito visto como luta branca e nós tentamos quebrar isso. O grupo trabalha com viés interseccional ao abranger diferentes áreas do ativismo feminista nas reuniões, porque percebemos esse problema”, compartilhou a estudante.
Luiza Cruz também se manifestou a favor da participação masculina no Marias, quando construtiva. “Feminismo é lugar de debate e qualquer pessoa tem de participar, porque é um problema estrutural que todos devem resolver”. Apesar da abertura, ela relatou que o grupo teve problemas com um integrante, autor de comentários machistas durante as reuniões, que os fazia para gerar desconforto nas alunas.
O professor Rodrigo Pires, da graduação e pós-graduação de relações internacionais, é um dos únicos a trabalhar questões de gênero em sala de aula. “Homens devem debater feminismo, porque o mundo é marcado por histórias patriarcais e machistas de desenvolvimento, em que tantas crianças ainda são educadas dentro desse sistema”, argumentou. Segundo ele, a luta contra esse problema é também masculina, para que se possa “caminhar para sociedade mais pacífica e igualitária”.
Estágio atual
“Temos entre dez e 15 integrantes, nem todas participam e algumas cogitam sair”, revelou Isabelle Pacheco, estudante do sétimo semestre de relações internacionais e coordenadora de comunicação do projeto. Antes da pandemia, o projeto registrava maior envolvimento das discentes. Em 2023, com a institucionalização e recebimento de bolsas como parte do Programa Institucional de Bolsas de Extensão (Pibex), o número de integrantes atingiu o auge.
No primeiro semestre de 2025, o projeto não ganhou bolsa, o que se tornou resultou em ausência de coordenação do GT de gestão de pessoas e pelo desinteresse de estudantes. Diante desse cenário, o Marias aposta em expansão para além da UnB. Apesar da ideia ter sido colocada em curso — por meio de reuniões híbridas para qualquer um que queira participar — é desafiador aumentar o público.
“O projeto cumpre papel muito importante de rede de apoio e construção de identidade com as acadêmicas. Uma vez que universidade e sociedade não estão separadas. Mas ainda é limitado à UnB”, afirma a professora Tchella Maso.
Entrevista
Formada em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) há dois anos, Karen Ayumi Kojima se descreve como mulher comprometida com visão de sociedade democrática, sustentável, antirracista e antisexista. Nesta entrevista, Kojima revisita trajetória acadêmica e descreve como a participação no projeto Mulheres Acadêmicas em Relações Internacionais e Ativismo Social (Marias) ajudou a inseri-la no mercado de trabalho. Hoje, ela ocupa cargo no Ministério das Mulheres.
Como surgiu interesse em participar do Marias?
No âmbito acadêmico e profissional, sempre tive uma grande inclinação para trabalhar com projetos que abordassem questões de gênero de forma interseccional e crítica. Na minha época de graduação, não havia matérias de docentes que abordavam isso na área das relações internacionais. Logo, participar do Marias foi oportunidade incrível para poder explorar mais a respeito dessa temática com outras colegas.
Como Marias influenciou sua carreira profissional?
Fiquei no grupo de 2021 até final de 2023, meu último semestre da graduação. Tive grande realização em institucionalizá-lo na UnB e ir a congressos representá-lo. Atuar nessa extensão definiu minha carreira profissional. Fui convidada para ser analista de projetos de uma organização não governamental (ONG) chamada Alumna, que oferece mentorias de carreira para mulheres e pessoas não-binárias, porque uma veterana, que participou das Marias, reconheceu minha dedicação à temática. Hoje, sou coordenadora da Coordenação-Geral do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres no Ministério das Mulheres e acredito que Marias fez parte dessa trajetória que me levou a atuar com esse tema.
O projeto também impactou sua vida pessoal?
No âmbito pessoal e um pouco mais sensível, eu fazia parte do Marias quando fui assediada por uma pessoa da turma de quem era próxima e sinto que isso adoeceu a minha relação com o curso. Essa pessoa era popular na graduação e tínhamos várias amizades em comum, logo, sentia que não poderia contar com muitas pessoas, por mais que tivesse amigas incríveis que me ajudaram e me acolheram. Foi nessa mesma fase que Marias passava por processo difícil de se manter e sinto que canalizei minhas energias no projeto e na sua institucionalização como forma de processar todo o turbilhão de emoções que senti. O resultado foi muito positivo. Foi ótimo ter uma rede em que me sentia confortável nesse último momento na universidade.
No Marias passou por alguma situação desconfortável ou de preconceito?
Sinto que por ser um projeto ligado a questões de gênero, Marias atrai pessoas que possuem perspectiva mais crítica e inclusiva. Ao mesmo tempo, o alunado de relações internacionais ainda é bem embranquecido, logo, uma mulher amarela nesse tipo de ambiente sempre pode sofrer situações de racismo, seja recreativo ou exotificação. Na minha experiência no projeto, nunca chegou a acontecer algo desconfortável. Mas, quando se falava da interseção de racialidade amarela e gênero, eu sempre tentava fazer uma fala mais educativa para não cair em certos estereótipos enraizados.
Walkyria Lagaci, 18
Jornalismo
