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Há espaços que sobrevivem no tempo como símbolos adormecidos, lugares com grande potencial mas que foram deixados à margem de políticas de valorização. O Zoológico de Brasília, moldado entre espécies do Cerrado e recintos de concreto, guarda memórias de uma cidade que nasceu projetada. Por muito tempo, o que deveria despertar interesse foi esquecido entre muros gastos e trilhas desiguais.
Hoje, o cenário é outro. À frente da iniciativa pioneira da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de Brasília (UnB), um grupo de professores e estudantes, unidos pelo desejo de fazer diferença e transformar esse espaço a partir de amplas especializações, se debruça sobre esse território com compromisso de transformá-lo em ambiente vivo, educativo e sensível para humanos, animais e paisagem em torno.
Zoológico mais humano
Projeto batizado de Requalificação Ambiental e de Acessibilidade do Zoológico de Brasília é comandado pela professora emérita Marta Romero, atual coordenadora do Laboratório de Sustentabilidade (LaSus), e desenvolvido por equipe interdisciplinar de 15 pessoas da FAU da UnB. Com financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), a proposta atua como plano diretor de transformação a longo prazo.
“Tem sido um exercício de aplicar na prática valores que defendemos na universidade: sustentabilidade, inclusão e inovação”, disse Miguel Amaro, formado pela Universidade de Brasília em arquitetura e urbanismo e que integra o grupo como doutorando. A proposta reorganiza caminhos, recintos e equipamentos públicos. Mas também propõe algo mais ambicioso: nova ética de convivência entre espécies, em que bem-estar animal, lazer com consciência e formação ecológica se entrelaçam.
Escuta, ciência e sensibilidade
A iniciativa é fruto do trabalho colaborativo que reúne estudantes, professores e especialistas. A equipe utilizou visitas técnicas, conversas com funcionários e diferentes ferramentas para entender com precisão o espaço de 139,7 hectares dividido entre prédios administrativos, recintos dos animais, áreas arborizadas, estacionamento e outros ambientes para a manutenção do zoológico. Entre as tecnologias utilizadas estão o escaneamento 3D, o uso de imagens aéreas captadas por drones — conhecido como aerolevantamento — e a modelagem BIM, uma tecnologia que permite criar representações digitais detalhadas da construção, o que facilita o processo de planejar reformas e interferências.
A partir desse diagnóstico, surgiram inspirações que envolvem paisagismo sustentável, acessibilidade, desenho urbano inclusivo e identidade visual. Para a doutora Mafalda Pantoja, que atua como pesquisadora no projeto, tudo no espaço deve ter intenção clara e cuidado real com quem circula por ele, sejam pessoas ou animais: “Pensamos em cada passo dentro do zoológico. Os caminhos com propósito não são apenas rotas de deslocamento, eles orientam a experiência, conectam visitantes com paisagem, animais e conhecimento. Tudo é planejado com atenção aos detalhes: acessibilidade universal, conforto térmico, sombreamento e integração com o entorno. Nosso objetivo é que o visitante se sinta guiado e acolhido em cada percurso”.
Mas… e os animais?
O zoológico de Brasília ficou fechado ao público entre maio e julho de 2025 após casos de gripe aviária. A situação reforça a necessidade de repensar cuidados e protocolos de segurança nesses ambientes. A requalificação esbarra ainda em pergunta fundamental que sempre aparece quando o assunto é zoológico: deve-se manter animais silvestres em cativeiro?
A equipe não ignora essa tensão. Pelo contrário, parte do trabalho busca repensar o papel do zoológico no século 21, conciliar conservação, pesquisa e conhecimento com o máximo de dignidade possível para animais.
Essa reflexão também atravessa o olhar de João Gabriel Silveira, estudante do sétimo semestre de medicina veterinária da UnB. Experiente em cuidado de animais silvestres e familiarizado com o funcionamento do Zoológico de Brasília, ele reforça a importância de se manter olhar ético e técnico a respeito desses espaços: “Sou a favor dos zoológicos. Quando bem conduzidos, cumprem papel importante na conservação de espécies ameaçadas. Muitos animais em risco foram reabilitados por essas instituições. Mas é preciso responsabilidade e priorizar o bem-estar animal. O que temos em Brasília, embora não seja perfeito, é um exemplo positivo, pois os recintos permitem que animais escolham o contato com o público, e os profissionais são extraordinários”.
Bióloga em formação, Larissa Isidoro se voluntariou para trabalhar no borboletário do zoológico em 2022, e compartilhou visão crítica, porém construtiva. Ela reconheceu que ainda há muito a ser melhorado nos habitats dos animais, em especial no que diz respeito ao modo de ocupação das aves no espaço, mas reforça o papel do lugar como ferramenta pedagógica e científica: “Acho zoológicos necessários. Não como ambientes de exposição e entretenimento às custas dos animais, como acontece em alguns parques aquáticos por exemplo, mas como espaços de estudo e aprendizado. No meu sexto semestre, pude entender na prática a vida animal. O zoológico também é importante por cuidar de indivíduos que não têm mais condições de viver na natureza e precisam ser reabilitados”.
Planejamento a longo prazo
Inserido nas projeções de Brasília 100 Anos — iniciativa que pensa o futuro não distante da capital, focado em sustentabilidade e inovação—, o plano diretor se conecta às diretrizes dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e à urgência da adaptação climática. Em um mundo em que o urbano avança sobre o natural, o novo Zoológico de Brasília quer ser o contrário: convite à reconexão.
Mais do que espaço de lazer, ele se propõe como ambiente de observação e aprendizado, onde o contato com a fauna e com a natureza estimula a empatia e reforça a importância do cuidado com todas as formas de vida.
João Vitor Lopes, especialista em Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística (Reabilita), curso de especialização oferecido pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, defende que “o projeto quer que o zoológico deixe de ser apenas ambiente de exposição e se torne espaço multidisciplinar.”
Para refletir
Mais que espaços de lazer, zoológicos se tornaram palco de debates intensos — éticos, ecológicos e educacionais. Em meio à transformação proposta pelo projeto do LaSus, surge a necessidade de refletir: qual é a função dos zoológicos em uma sociedade que busca cada vez mais se reconectar com a natureza e defender os direitos dos animais?
Educação ambiental: quando bem conduzido, oferece oportunidades únicas de sensibilização. Observar animais desperta empatia, inspira vocações e gera consciência ambiental.
Conservação de espécies: Zoológicos modernos protegem a biodiversidade com programas de reprodução assistida e cuidado de espécies ameaçadas. Em tempos de crescente desequilíbrio ecológico, esses esforços podem significar sobrevivência de espécies inteiras.
Ainda é cativeiro: Por outro lado, a manutenção dos bichos fora de seus habitats levanta uma questão moral. Mesmo com recintos amplos e cuidados técnicos, nem sempre é possível reproduzir estímulos e comportamentos naturais de um animal selvagem. Condições inadequadas, o que ainda ocorre em muitos zoológicos, resultam em sofrimento físico e psicológico.
Obsolência ética: A crítica mais severa aos zoológicos reside na origem: exibição de animais como entretenimento humano. Ainda hoje, muitos espaços ao redor do mundo tratam a fauna como atração, não como vida a ser respeitada. A linha entre transmitir conhecimento e espetáculo é tênue — e precisa ser observada com cuidado.
Giovanna Neres, 19
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