Entre Aimorés e Brasília tem um Jabuti

Há histórias que não cabem em notícia. Desde a infância, permeada por gibis e clássicos ilustrados, José Rezende Jr. sabe disso. Jornalista veterano, radicalizou-se em Brasília e construiu carreira em grandes redações, como O Globo e Correio Braziliense, até o dia em ¹que as palavras pediram algo mais. Em 2005, ao lançar A mulher-gorila e outros demônios, estreou na literatura e, cinco anos depois, ganhou prêmio Jabuti — tradicional premiação literária brasileira — com Eu perguntei para o velho se ele queria morrer (e outras histórias de amor). Nesta entrevista, Rezende conta mais a respeito de trajetória profissional, e processo criativo e comprova: palavra é seu ofício.

José Rezende Jr. concedeu entrevista aos alunos de Texto Jornalístico. Crédito: Mariana Santana

Desde pequeno, o senhor tinha paixão pela literatura. O que te fez seguir carreira no jornalismo?
Sempre gostei de ler. Na minha cidade, Aimorés, do interior de Minas Gerais, tinha apenas papelaria que vendia livros e revistas em quadrinhos. Comecei com eles. Escrever era natural com minha imaginação fértil. Então, queria ser escritor, mas não sabia como. No ensino médio, fiz um curso técnico que não tinha nada a ver comigo. Quando chegou a época do vestibular, não tinha ideia do que queria fazer e tentei passar para engenharia, ainda bem que fui reprovado. Um dia fui visitar minha irmã, que fazia comunicação em Belo Horizonte, e quando ela contou como funcionava o curso me encantei. Percebi que era exatamente o que eu gostava. Foi assim que decidi estudar jornalismo.

O senhor se sentia preso na redação por ter que escrever fatos, sem uso da imaginação?
Não me sentia preso. Gostava muito do que fazia, apesar de não ser fácil. Na época do Correio Braziliense, escrevia a respeito de pautas interessantes, com liberdade de escrita, e conheci várias pessoas. Claro, no fundo, sentia que precisava dar esse passo adiante. Por um lado, o jornalismo atrasou minha entrada na literatura, pois não tinha tempo, era corrido e cansativo. Por outro, como repórter, adquiri matéria-prima, bagagem que, de outra maneira, não poderia ter tido.

Como jornalista, quais são seus princípios e objetivos?
Quando comecei como repórter, tínhamos o jornal laboratório da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Marco. Ele tem característica importante, que me moldou como profissional: era distribuído nos bairros vizinhos. Então, além de exercitar texto, tínhamos compromisso com a comunidade em volta. Hoje seria chamado jornalismo comunitário. Aprendi a real função do jornalista: retratar realidade. E, também, quando era estudante, recebemos o repórter Marcos Faerman para uma palestra. Era espécie de herói para nós, e falou algo que virou meu slogan: “O mais importante, para o repórter, é manter perplexidade sobre o fato”. Então, como profissional, deve-se descobrir as causas do que aconteceu e nunca banalizar situações.

Como o senhor enxerga a função da literatura no Brasil?
Em dias ruins, acho que não serve para nada. Nos bons, o que mais me impressiona na literatura é a capacidade de te deslocar do eixo em que se encontra. Ela te leva a lugares e te apresenta outras pessoas. O Brasil estaria em situação muito melhor, hoje, se lêssemos mais, porque a leitura humaniza pessoas e as torna mais generosas. Além de fazê-las entender melhor os outros ao redor, sobretudo hoje, no universo das redes sociais. Não somos iguais e devemos nos respeitar.

 

Autor José Rezende Jr. e turma de Texto Jornalístico do primeiro semestre de 2025. Crédito: Mariana Santana

Na escola, enquanto colegas escreviam sobre idas ao sítio do avô, o senhor escreveu ter sido abduzido por alienígenas. Desse modo, acredita que enxerga o mundo de forma diferente?
Não acredito que vejo o mundo de forma diferente, mas, posso fazer revelação: recebi diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) ano passado, então, de alguma maneira, meu cérebro funciona de jeito diferenciado. Não é maravilha como acham, é complicado. Ganha de um lado e perde de outro. Ainda assim, para ser bom escritor, basta a imaginação. Vida real é simples, o segredo é não colocar freios no pensamento. É perceber situação e pensar: E se? A partir daí, você começa a ver realidades diversas. Não se resume a aspecto neurológico, mas gira em torno de sobre permitir que histórias tomem forma.

Como surgem as personagens? Onde eles se encontram na cabeça?
No fazer ficcional, você não sabe de onde as coisas vêm, elas surgem de maneira repentina. Quando escrevo, entro em contato com meu subconsciente, com memórias guardadas e a ideia toma rumo próprio. Haruki Murakami, autor japonês, sente que há dentro dele centenas de pequenas gavetas, as quais, durante o processo de escrita, abrem-se. Elas são memórias, coisas que viu ou escutou. Então, qualquer palavra pode ser gatilho para puxar alguma delas e adicionar algo ao texto.

A obra Fábula urbana tem como ponto de partida um acontecimento real vivenciado pelo senhor, poderia descrevê-lo?
A história real aconteceu anos antes de escrever o livro e estava esquecida na memória. Na época, tinha compromisso de publicar um conto por dia no meu antigo site, e foi nesse contexto que me lembrei do episódio. Estava no shopping Conjunto Nacional, em Brasília, parado em frente a livraria que estava prestes a fechar, quando um menino me abordou. Ele chegou e disse: “Ei, tio, compra um livro para mim?”. Fiquei surpreso, mas achei legal o gesto. Entramos juntos na livraria, ele também me pediu ajuda para escolher. Perguntei do que gostava, e me explicou que era presente para o irmão menor. O resto da história, claro, foi invenção. E uma coisa curiosa: me perguntam muito qual foi o livro, mas não me lembro.

O senhor costuma ler obras antigas e notar aspectos que melhorou na escrita? Qual papel da revista Traços nesse contexto?
Não gosto de ler minhas obras antigas. Sempre acho que poderia ter feito melhor, sou perfeccionista. Algumas vezes, li para revisá-las e gostei. Acredito que minha entrada madura na literatura contribui para isso, porque tive experiência com textos no jornalismo. Como repórter, comparado ao início, meus trabalhos evoluíram. Nisso, vejo que melhorei muito, sobretudo quando entrei na Traços. A revista me permitia liberdade, então levei elementos da literatura para o jornalismo. Sem invenções, é claro, mas a experiência na ficção me possibilitou explorar a estrutura narrativa das reportagens.

Como o Júnior de Aimorés recebeu o prêmio Jabuti?
Faço comparação com futebol, que gosto muito: me imagino em um jogo no Mineirão, vejo meus ídolos jogarem e, de repente, vem o Jabuti. É como se estivesse, então, dentro de campo, um jogador entre eles. Foi surpreendente. Hoje tenho o “Jabutizinho” em destaque na estante de casa. Agora, também é ilusão pensar que portas do sucesso se abrem, como eu esperava. É fato, sempre coloco no currículo: ganhador do Jabuti. É um cartão de visita, maneira de você sair da vala comum editorial. Mídia, por exemplo, não me dá muita moral. Mas, para o Júnior de Aimorés e para minha família, é uma alegria.

¹Esta entrevista reúne perguntas e trechos de maior destaque captados pelos estudantes da turma de Texto Jornalístico 2.2024, durante conversa com o jornalista e escritor José Rezende Jr. Participaram da atividade: Agnaldo Junior, Alice Meira, Ana Miletti, Anna Mendes, Daniele Cruz, Débora Vargas, Francyelle Lima, Gabriel Jardim, Glaucia Carvalho, Guilherme Vaz, Ian Costa, Isabela Brito, Joana Santos, João Zamora, Júlia Lima, Layara Lima, Luiz Silva, Mariana Caixeta, Maria Pozzebon, Parys Muniz, Sofia Mendes, Terezinha Silva, Walkyria Alcantara, Yandra Costa.

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