
Traços e memórias
Fernando Lopes construiu mural invisível em Brasília com arte que transcende páginas de livros e jornais e se espalha por selos e telas. Na capital onde o modernismo tomou forma, o ilustrador encontrou espaço possível para expressar surrealismo. Nesta entrevista, ele compartilha influências, aprendizados e revela busca constante de traduzir sensações em imagens. Também explora ilustrações que desafiam o tempo e ocupam lugares rotineiros, que fazem pessoas verem o comum de forma extraordinária.

O senhor começou cedo na arte, fez exposições aos 15 anos. Consegue se reconhecer naquele jovem artista?
Tenho muitos desenhos daquela época guardados até hoje. Eram feitos com caneta Bic, de maneira espontânea. Eu desenhava pensando que um dia, mais velho, poderia usar aqueles traços. Hoje, olho para esses trabalhos e me pergunto: como consegui fazer aquilo? Tinha uma liberdade que não tenho mais. Meu primeiro desenho de exposição foi feito deitado na cama, sem esboço, sem planejamento. Agora, antes de iniciar qualquer trabalho, passo meses pensando, anos adiando, é tão limitado.
Na época, Rolando Toro, criador da biodança, teve papel importante na sua formação artística. De que forma essa influência aparece no trabalho?
Quando Rolando viu meus desenhos, quis me conhecer e disse que eu era artista. Ele organizou minha primeira exposição. Chiquinho Amaral, um dos melhores diagramadores do país, escreveu que, no meu desenho, o corpo se transforma de modo quase doloroso, que os personagens têm vida própria. Isso vem da biodança. O corpo na arte se transforma, tem ritmo, tem força. Rolando com certeza foi meu pai artístico.
Além dele, houve influência familiar durante a trajetória?
Meus pais não tinham ligação com arte. Mas tive um trisavô, do lado materno, Miguel Navarro y Cañizares, que foi artista. Em casa, tínhamos obras dele, incluindo um desenho em homenagem a Simón Bolívar, feito em Caracas em 1874. Esse quadro esteve na sala da minha casa por anos. Depois, recebi documentos e outros materiais da família e os doei à Escola de Belas Artes da Bahia. Não foi uma influência direta, mas essa presença artística na família sempre esteve ali.
O senhor viveu em vários lugares e passou por diferentes experiências, inclusive no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, onde ilustrava anatomia. Como foi trabalhar em um ambiente mórbido?
Foi difícil. Minha sala ficava no fim do corredor que passava por laboratórios de necropsia, salas de dissecação e geladeiras de corpos. Trabalhar ali foi um choque. Eu ilustrava ossos, articulações, músculos. Pegava ombros de cadáveres para desenhar e estudava a estrutura anatômica. A experiência foi antropológica. Ver as famílias chegando para buscar seus parentes, enfeitando os corpos com flores, fez com que eu refletisse a respeito de nossa relação com a morte.
Esse contato com a morte teve influência na arte de alguma maneira?
Sem dúvida. A morte é um dos temas mais profundos que existem. Ilustrei uma matéria para a revista Superinteressante chamada “Onde nos tornamos humanos?”. A antropóloga entrevistada dizia que foi quando começamos a enterrar nossos mortos. Nenhum outro animal faz isso. Então sempre tive certeza da seriedade de meus desenhos e como eu gostaria de tratá-los.

Depois do hospital, o senhor trabalhou muitos anos no jornalismo. Como era ilustrar sob prazos apertados?
Ilustrar no jornal foi um exercício de disciplina. Tive de aprender como fazer. Quando não estava bem, minha vingança era desenhar de modo rigoroso o que sentia. “Carregar nas tintas’’ é uma expressão usada para exagero, mas eu não tinha escolha senão carregar nas tintas. Minha arte é como qualquer coisa na vida: sem individualidade, não há nada.
Ao longo da carreira, o senhor também criou selos para os Correios. Como enxerga esse tipo de trabalho?
O selo, apesar do tamanho pequeno, é um monumento. Ele tem solenidade. Não se pode fazer um selo sem energia, e energia não é algo abstrato. Ela vem da leitura, dos esboços, do estudo. É um acúmulo de conhecimento que se transforma em algo visual. Como Davi, de Michelangelo, que tive oportunidade de ver na Itália. Aquilo é energia, não é só chegar e fazer.
Ao olhar para trás, tem algo que quer recuperar no jeito de fazer arte?
Acho que preciso reencontrar a liberdade que tinha no começo. Estou há semanas querendo desenhar, mas ainda não comecei. Fico me perguntando por quê. Talvez a resposta seja simples: sentar e fazer. Como quando tinha 15 anos e simplesmente pegava uma caneta e desenhava sem pensar demais.
Ilustrador carioca Fernando Lopes começou a jornada artística aos 15 anos com exposição em Santiago, Chile. Trabalhou mais de 20 anos no jornal Correio Braziliense e dez anos no Hospital Sarah Kubitschek, além de criação de selos para os Correios. Ilustrou livros como Como nasceram as estrelas, de Clarice Lispector. O ilustrador oferece cursos no Atelier Fernando Lopes, localizado na Asa Norte. Mais informações no Instagram @fernandolopesilustrador
Esta entrevista reúne perguntas e trechos de maior destaque captados pelos estudantes da turma de Texto Jornalístico 2.2024, durante conversa com o ilustrador Fernando Lopes. Participaram da atividade: Alice Hanae, Álvaro Augusto, Ana Cavalcante, Artur Gomes, Cecília Carrera, Daniella Neves (editora), Francisca Kanamari, Igor Borges, João Victor Pereira, Marcia Motta, Marcielle Sueira, Maria Eduarda Alves, Maria Santos, Mariana Chagas, Natália Hozana, Nicole Bartieli, Ranielly Aguiar, Roberta Bianca, Susana Ramos, Wemilly Cardoso e Yasmin Carvalho.