Por trás das próteses

Toda semana, a Associação Portuguesa de Brasília abre espaço para a inclusão. Localizada entre Taguatinga Sul e Águas Claras, no Distrito Federal (DF), o clube conta com quatro quadras de tênis e uma professora da modalidade Para Standing — tênis adaptado para pessoas com deficiência (PCDs) que não necessitam de cadeira de rodas para locomoção. Atleta com deficiência nos membros superiores, Thalita Rodrigues (31) treina, nas terças e quintas-feiras, uma garotinha com essa mesma condição.

A pequena atende pelo nome de Maria Rita Gomes de Medeiros (8) e carrega prótese no braço esquerdo. Esse dispositivo é personalizado e leva estampa de sereia, a pedido da jovem tenista. Há quase dois anos, ela foi contemplada por projeto do Laboratório de Prototipagem e Inovação de Sistemas (LAPIS). Equipe coordenada pelo professor Renan Balzani (39) conta com colaboração de estudantes e produz, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB), próteses de baixo custo para doação.

Como começou

Balzani deu início ao projeto em 2021, quando dava aulas em faculdade particular do DF. A pedido de Larissa Cayres (48), coordenadora do curso de arquitetura e urbanismo no IESB, precisou pensar em possibilidades para colocar o laboratório de prototipagem do lugar a serviço da população. Foi, então, firmada parceria com a e-Nable, comunidade global que desenvolve próteses e disponibiliza projetos para serem executados por qualquer pessoa ou instituição com acesso a softwares e máquinas de fabricação digital.

“Tivemos contato com a e-Nable por meio de pesquisa. Encontramos esses projetos na internet e fizemos nossos próprios modelos. Nossa linha de trabalho hoje é devolver isso à comunidade em forma de doação”, contou o professor. Em 2022, a partir da aprovação de Balzani no concurso de docentes da UnB, o projeto ganhou continuidade na FAU. Iniciativa é voltada para crianças e adultos com ausência de dedos ou qualquer membro superior abaixo do cotovelo. Mais de dez famílias foram beneficiadas, sob condição de não comercializar as próteses.

Como funciona

O processo de modelagem das próteses acontece por meio de impressoras 3D. Elas utilizam ácido polilático (PLA), polímero biodegradável obtido a partir de matérias-primas como amido de milho, beterraba e cana-de-açúcar. Comum para este tipo de procedimento, o composto ácido custa cerca de cem reais por quilo.

As peças finais têm sistema de acionamento por alavanca e permitem movimentação simples, como de agarrar. Contudo, abertura e fechamento dos dedos requer flexão de parte do braço. Portanto, as próteses são adaptáveis apenas a pessoas cuja deficiência não tenha afetado membros superiores acima do cotovelo.

O diferencial, no projeto da universidade, é o baixo custo. A depender do modelo, cada prótese exige, no máximo, 80 reais para ser produzida, custeados pela verba do projeto. Para se chegar a esse valor, são consideradas despesas relativas a energia elétrica, tempo de máquina e materiais complementares, como linhas, parafusos e elásticos. Próteses convencionais chegam a custar 27 mil reais, segundo dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Parceiros do projeto – como a Associação Lelê – doam plásticos ao laboratório quando esses materiais estão em falta. Qualquer pessoa pode ceder PLA ao projeto, no subsolo da FAU/UnB, no campus Darcy Ribeiro. “Se alguém traz um quilo de filamento plástico e gera um projeto arquitetônico de apenas 700 gramas, os 300 restantes ficam conosco. É uma troca”, relatou Pedro Mesquita (25), estudante de arquitetura e urbanismo na UnB e bolsista do LAPIS desde 2023

Para ter acesso a próteses, é necessário indicação médica que ateste benefício ao paciente. Depois, ele deve passar por fisioterapia para se habituar ao uso.

Adaptação

Para o presidente da Associação Lelê, Ricardo Paulin (48), contato tardio com próteses pode gerar desafios no processo de adaptação. “A prótese é útil, mas é como uma bolsa. Se você não souber usar, ela vai ficar de suporte e não vai servir para nada. Em certos casos, a pessoa passa a não utilizar porque faz tudo melhor sem”, esclareceu. Segundo ele, pacientes sem contato precoce com esses dispositivos se acostumam com outras maneiras de realizar atividades cotidianas.

É o caso da estudante do primeiro semestre de audiovisual na UnB Iara Sousa (18). Natural do município goiano de Uruaçu, ela se mudou para Brasília aos 15 anos na tentativa de conseguir prótese no Hospital Sarah Kubitschek – o que não aconteceu. “Depois de passar 18 anos sem fazer uso de próteses, elas se apresentam mais como impedimento do que como facilidade. Eu nunca tive um braço, logo, não é possível sentir falta de algo que nunca tive. Aderir à prótese nessa altura do campeonato seria como renascer”, relatou.

A falta de adaptação é agravada no caso de pessoas adultas. “Existe uma curva de aprendizagem quando se trabalha com crianças. Adulto tem menos paciência, quer algo mais imediato, que ele ponha e substitua, como se fosse um braço normal, mas isso ainda não existe”, explicou presidente da Associação Lelê.

Mesquita, estudante da FAU, é mais taxativo. “A prótese varia muito mais da habilidade da pessoa do que das limitações do material”, observou. Essa dificuldade de se manusear soma-se ao fator estético: para pessoas mais velhas, a aparência mecânica das próteses de baixo custo pode ser motivo de constrangimento. “Elas não querem uma prótese 3D, chamativa; querem algo similar à pele”, relatou Paulin. O projeto da UnB, por dificuldade de adaptação, registrou desistência de pessoas contempladas.

Impacto na autoestima

Se, para adultos, prótese pode ser sinônimo de mal-estar, para crianças, ela é quase um brinquedo. “Como não temos interesse em fazer próteses que imitem a mão ou outro membro inexistente, elas remetem a algum brinquedo ou outra coisa lúdica”, contou Balzani. Próteses infantis do projeto ganham customização, muitas vezes a pedido da própria criança. É comum esses modelos estarem associados a personagens de quadrinhos.

Para Paulin, customizar próteses faz com que comportamentos preconceituosos deem lugar a estímulos positivos. “Se antes da prótese, outras crianças faziam comentários do tipo: ‘Olha, fulana não tem braço, parece um fantasma’, depois da prótese personalizada, passam a dizer: ‘Poxa, agora ela tem um negócio bacana’”, relatou.

Ao projeto, a pequena Maria Rita, citada no começo desta reportagem, pediu prótese temática de sereia e teve vontade atendida em 2023. Ela nasceu com agenesia de membros — ausência ou desenvolvimento incompleto de membro por má formação congênita. Segundo a mãe, Maria do Socorro Gomes do Nascimento (47), a menina faz uso da prótese apenas quando pratica atividades físicas.

Nascimento se emocionou ao falar do preconceito enfrentado pela filha. “Pensam que pessoas assim [com agenesia de membros] não são capazes, mas são”, contou. Na visão da mãe, Maria Rita se sente mais confiante quando está com a prótese. A menina é apaixonada por tênis e fala em seguir carreira no esporte quando crescer.

Como pedir

As próteses são solicitadas por meio da Associação Lelê. Responsáveis verificam cada caso e encaminham ao laboratório para a confecção do dispositivo.

Associação Lelê fica em Águas Claras, no endereço Avenida Pau Brasil, lote 19. Contato é feito pelo e-mail: contato@associacaolele.com.br




Associação Lelê foi criada em 2020 por Ricardo Paulin e é parceira do Laboratório de Prototipagem e Inovação de Sistemas da UnB desde 2022. Parte das impressoras utilizadas na confecção das próteses foi doada pela instituição, assim como plásticos e outros materiais.

Paulin é cirurgião dentista, com doutorado em ortodontia, e professor do Centro Universitário Icesp, de Brasília. Há quase uma década, teve Helena (8), que nasceu sem um dos braços. Ele relata episódio de preconceito no Hospital Sarah Kubitschek. “Um médico me disse que minha filha tinha uma mão e não precisava de duas. Depois dessa frase, pensei: ‘Se eu, da área da saúde, ouvi isso, imagina quantas outras pessoas não ouviram’”, relembrou Paulin.

Para prestar suporte a outras pessoas com agenesia de membros, deu início à Associação Lelê, cujo nome faz alusão à filha. Iniciativa presta suporte a pacientes de qualquer idade, por meio da doação de próteses e do acompanhamento em terapias subsequentes.

É de Paulin a ideia de criar o Dia da Conscientização da Agenesia de Membros, comemorado no Distrito Federal em 25 de agosto. A proposta, apresentada pelo presidente da Associação Lelê na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), contou com apoio do deputado Hermeto (MDB), autor da Lei nº 6.918, que incluiu a data no calendário oficial de eventos do DF em 2021.

Em 2025, Balzani, coordenador do laboratório de próteses da UnB, firmou parceria com o Hospital da Criança de Brasília para trabalhar no desenvolvimento de tecnologias assistivas. Equipe do hospital vai promover estudo relacionado à criação de próteses, e representantes do LAPIS vão imprimir os modelos. Esses dispositivos não serão direcionados a crianças.

Igor Borges, 20
Jornalismo
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