Mães que (r)existem

“A maternidade institucional, em nossa cultura, nos diz que criar filhos é o trabalho mais importante do mundo, mas nos despreza por realizá-lo” é uma frase extraída do  livro Nascida de mulher: maternidade como experiência e instituição, da renomada feminista Adrienne Rich. A afirmação reflete embelezamento paradoxal a respeito de ser mãe pela coletividade, uma vez que desafios quase intransponíveis para execução da tarefa não faltam. Assim, adentra-se o complexo universo da maternidade. A Universidade de Brasília (UnB) é pioneira em políticas de inclusão, contudo, ao tratar-se de mães, não é tão proativa quanto poderia, segundo relatos de mães estudantes. 

Na perspectiva nacional, 51,1% dos 212,6 milhões de brasileiros são, na verdade, brasileiras, segundo o Censo Demográfico de 2022. Dessa porcentagem, sete a cada dez mulheres são mães, como apontou Datafolha, instituto de pesquisa brasileiro pertencente ao Grupo Folha, em estudo de 2023. Mães ocupam mais espaços do que o imaginário coletivo supõe. Casada, solteira, divorciada, sob planejamento familiar ou pega de surpresa pela notícia de gravidez, com rede de apoio ou sem, são inúmeros contextos possíveis. Porém, seja qual for a situação, batalha por visibilidade, espaço e direitos é característica constante em todos eles.

Um dado salta aos olhos quando se pesquisa acerca da maternidade: segundo estudo do Datafolha, mulheres sem filhos são 112% mais prováveis de completarem o ensino superior do que mães no quadro universitário. Soa contraditório, uma vez que mulheres representam 59% dos 8,9 milhões de estudantes matriculados no ensino superior, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2021, conduzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Quantas mulheres dessa maioria no ensino superior são mães? Esse dado não é localizável. E isso faz parte do problema. 

Sob essa perspectiva, ao procurar informações acerca do tema dentro da UnB, precursora em diversas pesquisas e políticas de inclusão, a questão ressurge. Não existem censos e estatísticas a respeito das mães no prisma da instituição. Sem dados, como elaborar políticas públicas eficientes direcionadas ao grupo? Até que ponto essas mulheres são prejudicadas por esse descaso? De que modo isso afeta a vida das mães no dia a dia dentro da universidade?

​​​​O Coletivo de Mães surgiu em 2016, em primeira tentativa por busca de voz dentro da comunidade. O intuito de trazer foco às questões maternas dentro do ambiente universitário era objetivo primordial. Com início frustrado devido à falta de alcance dentro do quadro universitário, a iniciativa caiu em esquecimento. Anos depois, em 2018, um grupo no WhatsApp foi criado para apoio logístico e divulgação de informações à comunidade materna da UnB. Grupo para mães criado por mães. Em 2020, carta que levantava demandas reivindicadas por docentes e discentes foi apresentada à reitoria. 

Tcherry Félix (25), estudante de filosofia e participante do movimento há anos, disse que “o coletivo surgiu justamente da necessidade de centralizar e resolver problemas que não estavam sendo abordados pela universidade”. A estudante, em nome do grupo, afirmou: “Vimos que um grupo no WhatsApp não era suficiente para fazer política pública dentro da universidade, foi a partir daí que conseguimos resgatar o coletivo e começamos a estruturar pautas”. Ela ressaltou a importância de continuar a luta por direitos e espaço. Apesar do ganho de visibilidade e avanços em demandas, abismo entre objetivos desejados e vividos ainda é colossal.

O desconhecimento quanto aos direitos maternos é consequência de dados precários, quase inexistentes, a respeito da população de mães no ambiente universitário. Bárbara Cardoso (33), estudante de odontologia na UnB, tem dois filhos, Beatriz e Miguel, e relata dificuldades neste quesito. A universitária recebeu, ao mesmo tempo, a notícia da primeira gravidez e da aprovação na faculdade. Apesar de planejada, gestação causou obstáculos. Um deles foi dificuldade em obter informações acerca dos direitos que possuía enquanto gestante. Segundo o Decreto-lei nº 6.202/1975, futuras mães possuem direito ao trancamento justificado ou a três meses de exercício domiciliar. 

Na UnB, estudantes podem trancar, no máximo, quatro semestres, dois justificados e o restante por questões consideradas não justificáveis. A futura dentista optou pelo trancamento ao final da segunda gravidez. “Tive depressão pós-parto e identifiquei coisas que me abalaram durante a gravidez. Estava trabalhando e fazendo faculdade, acho que peguei pesado demais. Me senti uma super-mulher”, afirmou. Ao buscar informações acerca do trancamento, a questão da justificativa não foi encontrada em secretarias ou em meios de comunicação oficiais. 

Dessa forma, a estudante fez um processo normal, ou seja, não justificado. Cardoso sentiu-se prejudicada e declarou que “agora, se eu quiser fazer um trancamento por razões pessoais, que não se enquadram na categoria justificada, vai ser meu último, pois gastei um deles nesta situação. A gente nunca sabe o que pode acontecer, talvez eu acabasse precisando dos dois”. 

Além das pautas convencionais, existem desafios pouco explorados no dia a dia dessa população. Letícia Gomes (27), pós-graduanda em Estudos Comparados sobre a América e mãe de Laila Vitória, relata dificuldades que poucos imaginam. “Não há muito suporte por parte da universidade. Ela até oferece facilidades, como o possível ajuste de horários de aula, mas isso não é suficiente. O que falta é uma estrutura compreensiva e acolhedora às necessidades das mães estudantes”, contou. A estudante relatou problema pouco comentado na comunidade universitária, mas vivido por muitas colegas na maternidade: acesso ao Restaurante Universitário (RU).

Na UnB, existem três valores diferentes para alimentação. Para aqueles que se encaixam nos critérios financeiros do grupo 1, há isenção do pagamento de refeições. Os grupos 2 e 3 pagam valores diferentes. O primeiro é direcionado à comunidade universitária e o segundo, mais caro, a externos. Gomes acessa a gratuidade no RU. Por não possuir rede de apoio em Brasília e a impossibilidade, no momento, de arcar com despesas relacionadas a creches, traz a filha consigo, todos os dias, para aulas. 

Embora se alimente de maneira gratuita, a filha é cobrada no valor do grupo 3, pois não está diretamente ligada à instituição. “Como vou pagar quinze reais todos os dias para minha filha poder almoçar se todo o sentido de eu ser isenta do valor é eu não ter de pagar refeições feitas dentro da universidade?”, questionou. “Se pagasse, seria um valor menor do que minha filha, uma criança, paga. Não há muita lógica neste sistema”, acrescentou.

A luta materna por conquista de direitos e voz avança no ambiente acadêmico. Em 2023, Félix, representante ativa do Coletivo de Mães, esteve presente na inauguração de 41 fraldários nos quatro campi da UnB. A instituição é uma das primeiras no Brasil a instalar tal estrutura em sanitários femininos e masculinos, com investimento de 70 mil reais. A graduanda afirmou ao UnB Notícias, durante o evento, que “isso que está acontecendo é uma conquista de todas nós. Deve ser comemorado e divulgado, porque pouquíssimas universidades têm essa estrutura, que nos escutam e nos auxiliam como a UnB”. A conquista foi gratificante para o coletivo porque ele mantinha diálogo a respeito dessa reivindicação há algum tempo junto à reitoria. 

Outro avanço foi a inauguração do Centro de Pesquisa em Primeira Infância (Cepi) em agosto deste ano, pedido antigo da comunidade materna. Com cerca de dez milhões de reais investidos na obra, a creche atenderá, em tempo integral, 121 crianças. Um terço dessas vagas é destinado aos dependentes de pessoas vinculadas à UnB, tanto docentes como discentes, e o resto se destina à comunidade externa. Até então, o único espaço de convivência para essas crianças, dentro da universidade, era o Programa Infanto Juvenil (PIJ), custeado pela Associação dos Servidores da Fundação da Universidade de Brasília (Asfub), instituição privada com capacidade para receber 60 crianças. Félix também afirmou a importância desse espaço como “essencial para a permanência das mães estudantes dentro da UnB”.  

As dificuldades enfrentadas pelas mães que estudam na UnB refletem problemas maiores e mais complexos, embutidos na sociedade. Sem dados precisos e, como consequência lógica, com poucas políticas públicas direcionadas, problemas estruturais seguem presentes. 

O reconhecimento da maternidade como algo real e possível na vida de estudantes é essencial para a compreensão de que o espaço acadêmico engloba variados contextos em sua comunidade. Criação de políticas inclusivas e esforço no sentido de ampliar debates acerca da temática são passos urgentes a serem dados pela instituição para construir ambientes mais equitativos e justos. Afinal, universidade acolhedora e respeitosa frente a essa esfera é um espaço que, de fato, preza pela mudança social por meio da educação, como defendia Darcy Ribeiro, fundador da UnB. 

Cecília Araújo Carlos, 19
Jornalismo
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