Vivo por minha morte

 

Penso na morte com frequência. Não de maneira mórbida, mas com perspectiva positiva. Compreendo aqueles que evitam abordar o assunto, porém considero tal atitude covardia sem igual. Minha filosofia pessoal abraça a aceitação do fim inevitável, desfecho natural e necessário. Memento mori, lembra-te que és mortal, assumo tal clichê como lema.

A morte não é acontecimento futuro distante, caminha ao meu lado desde o momento da concepção. Quando ainda era um feto em desenvolvimento, a vida era apenas possibilidade. Longe de ser vitória sobre a morte, era apenas o ciclo natural. Vida e morte se entrelaçaram no mesmo ser, no momento que vim ao mundo o processo de deterioração começou.

Michel de Montaigne, escritor renascentista francês, sugeriu que a sabedoria reside em não ter medo de morrer. Meditar a respeito da morte, para ele, é parte do aprendizado para viver bem. No entanto, muitos se recusam a pensar nela; como se ignorar sua presença pudesse afastar o inevitável.

Algumas pessoas desejam morrer. Podem estar doentes, sem perspectiva de melhora, e todas as manhãs acordam desapontadas por não terem morrido durante o sono. Nestes casos, é melhor falecer do que continuar uma vida que não vale a pena viver. Mas para a maioria das pessoas, a morte não é bem-vinda, e se faz todo o possível para evitá-la.

Há aqueles que consideram a morte como uma das piores coisas que podem acontecer a alguém. Entenderia essa visão se a morte fosse seguida por período desagradável no além. Pode ser que ela não seja o fim, mas apenas transição de um tipo de existência para outro. Posso, de alguma forma, continuar em um estado consciente depois de morrer, apesar da decomposição que ocorre na sepultura. Poderia estar condenado a tormento eterno no inferno. Nesse caso, morrer seria ruim, estaria pior do que estou agora.

Mas e se não houver vida após a morte? Se for o final definitivo, volto ao pó do qual vim e pronto? Então, morrer não me faz ficar pior do que sou agora.

Se for apenas o fim da consciência, como poderia ser ruim? Parece claro, mas por quê? A resposta é que, na verdade, não é. O desprezo pela morte é equívoco. Essa era a visão de Epicuro, filósofo grego antigo: “A morte, o mais aterrorizante dos males, não é nada para nós, uma vez que, enquanto existimos, a morte não está conosco; mas quando a morte vem, então não existimos”.

Estar sem vida é não existir e não há nada desagradável nisso. Ninguém se importa de estar morto. Os finados nunca reclamam, apenas não estão mais lá para serem infelizes.

Entendo o porquê de ter medo do processo de declínio na saúde, muitas vezes doloroso e indigno, que culmina no óbito. Mas parece erro temer o nada que é a morte em si. Quando morrer, serei como era antes do nascimento. Estar morto não parece pior do que estar em um sono sem sonhos.

Minha morte não me afeta enquanto estou vivo. A expectativa ou o medo podem afetar, mas não o óbito em si. Também não afetam quando estou morto, nada pode me atingir naquele momento. Portanto, a morte, como diz Epicuro, não é nada para mim. Ela não pode ser ruim. Não que os benefícios superem os prejuízos, mas porque é impotente para causar qualquer mal.

Mesmo que minha vida transcorra tão boa quanto poderia ser, não seria ruim se tudo acabasse agora. A atitude racional não é o medo de morrer ou o desejo de adiar o fim pelo maior tempo possível, mas completa indiferença quanto à duração da própria vida e à hora da própria morte.

É comum vincular óbito à idade, mas essa associação é risível. Rio da arrogância de alguns jovens diante da velhice; como se, a partir de certa idade, o fim se anunciasse no rosto enrugado e no corpo decrépito. No entanto, a morte não segue os critérios da certidão de nascimento. Ela pode atingir em qualquer fase da vida. Todo ser, novo ou velho, sem exceções, morre.

O tempo é medida da vida vivida, não da intensidade do viver. A longevidade, por si só, não garante vida plena. Os avanços científicos podem prolongar a existência biológica, mas não asseguram qualidade de vida. A manutenção da vida, sob certas condições, torna-se cruel, de modo especial quando prolongada de forma artificial. O indivíduo em tal situação perde a capacidade de decidir o próprio destino, e a lei, em muitos casos, proíbe e pune a eutanásia. O prolongamento da vida nesses termos não é viver, mas sobreviver; sob condições de dor e sofrimento constantes, sem controle sobre o próprio corpo. A utilidade do viver está no seu significado, na qualidade e não na quantidade. A vida plena não é a mais longa, mas a mais rica em experiências e significados.

Rita Lee, uma das mais célebres cantoras e compositoras do Brasil, morreu vítima de um câncer aos 77 anos. Foi uma tragédia, não apenas para seus admiradores e aqueles que amavam sua música, mas também para ela, que amou a vida mais do que qualquer coisa. Quão ruim foi para ela morrer quando morreu? A resposta depende do que aconteceria se fosse de outra forma. O que teria acontecido? Quanto tempo ela teria vivido? O que teria feito com o tempo extra?

Poderia ter retornado aos palcos, escrito outros livros, voltado a fazer gravações ainda maiores do que as lendárias faixas da década de 1970 e 80. Ou poderia ter abandonado completamente a música, vivido o resto de dias reclusa, longe dos holofotes. Existem muitas outras possibilidades, várias maneiras de como a vida de Rita poderia ter continuado se não tivesse morrido naquele oito de maio. Algumas são sem dúvida mais prováveis do que outras, mas não parece haver apenas uma maneira pela qual sua vida definitivamente teria continuado. Todas, porém, teriam algo em comum, ela morreria.

Em Outra autobiografia, livro no qual Rita narra o tratamento contra o câncer de pulmão que a matou, comenta que escreve muito a respeito do morrer, afirma saber que está próxima do fim, mas não sente medo, pois sabe que ao deixar o corpo físico partirá para um desconhecido que também não teme. Rita acreditava que a morte deveria ser o grande gozo final da vida. Penso como ela, não tenho medo de morrer, mas vivo apavorado com a ideia do que pode vir ao longo dos dias.

Não me lastimo com a ideia da morte como fim da minha existência, pois talvez esse final não seja absoluto. Quem sabe o que está do outro lado do caminho?

Então, por que refletir a respeito da morte se isso induz à angústia? Aquele que se recusa a pensar na morte se ilude, é impossível relegar sua presença. Como Montaigne sugere, para reduzir a estranheza da morte, devo tomá-la como parte da jornada diária.

É necessário retirar as máscaras que iludem e aprisionam nos medos. Conceber a vida e a morte em sua simplicidade pode ajudar a enfrentar o inevitável de maneira mais serena. Não é fácil, mas enfrentar a morte permite compreender que, no final, tudo terminará bem; de qualquer forma, será o fim. Não há como escapar ao destino comum à condição biológica humana. Refletir a respeito da morte é jornada necessária para compreensão mais profunda da vida e para aprender a vivê-la de maneira mais plena e significativa.

“Desde que existe a morte, imediatamente a vida é absurda.” A frase, atribuída a Amália Rodrigues, cantora portuguesa considerada a maior fadista de todos os tempos, pode ser interpretação de como me sinto ao terminar de escrever esse ensaio.

Refletir a respeito do tema da vida, da morte e do morrer foi mais difícil do que havia planejado. Não poderia simplesmente vir aqui e dar minha opinião a respeito do tema, mas acho que foi o que fiz. Tenho consciência que minha relação com o assunto é complicada, muitas pessoas ao meu redor não entendem meu ponto de vista, mas espero que ao ler esse ensaio entendam.

Faço apenas um pedido, caro leitor: não tema a morte; pois ela te acompanhou desde o primeiro momento da vida. Ninguém foi mais fiel do que aquela que nunca saiu do teu lado. Quando a hora chegar, aceite-a como a velha amiga que tem sido e parta dessa vida sem se preocupar com o que abandona. Dê o passo em direção ao desconhecido e não volte para estragar a surpresa para os outros que vão depois de ti.

 

Eduardo Borges, 19
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