
Corpo vazio
Cheguei ao mundo como algo excepcional na vida do meu pai. Pelo menos, é o que me dizem. Fui a primeira filha biológica. Junto com minha mãe, sempre lutou para que eu e minha irmã tivéssemos vida digna. Ele era brigadista e atuava na área de decoração de ambientes; ela tinha uma lavanderia em casa e trabalhava como diarista.
Cresci na Ceilândia, a mais populosa (350 mil moradores) e violenta das regiões administrativas do Distrito Federal (DF). Na infância, vi vários amigos serem seduzidos pelo crime e depois assassinados.
Meu pai sempre teve ambição de proporcionar vida boa à família. Uma hora decidiu ganhar dinheiro fácil. Recorreu ao tráfico de drogas a fim de resolver problemas financeiros. Não demorou para o telefone tocar com a notícia de que tinha sido preso em flagrante. Foram nove meses de reclusão.
Para minha mãe e eu foi o começo de uma rotina nova. Toda quarta-feira marcava a dança entre insônia e ansiedade. O despertar às quatro da manhã era acompanhado pela melodia de “Cachimbo da paz”, de Gabriel o Pensador, transmitida pelo programa Na polícia e nas ruas, da rádio Atividade FM. O assunto da atração de rádio é a criminalidade em Brasília e cidades do Entorno do Distrito Federal no período noturno; a música, como pintura sonora, desenha um país envolto em hipocrisia, com cidadão comum como protagonista oprimido pelo sistema.
Nesse cenário, eu e minha mãe, vestidas de branco e desprovidas de qualquer acessório, iniciamos nossa jornada em direção ao metrô. Em meio à complexidade da rotina urbana, os trilhos do Metrô DF se entrelaçam com a vida de milhares de indivíduos todos os dias. Esse intricado sistema, composto por 29 estações, revela-se como rede vital para a mobilidade urbana. No entanto, algumas destas estações permanecem sem funcionamento; apesar disso, transporta média impressionante de 160 mil passageiros diariamente.
A jornada que começou na Ceilândia Norte tem como destino a rodoviária do Plano Piloto. Quarenta minutos de trajeto são permeados por multidão, um espetáculo caótico. A luta por bancos é feroz, mas no final, a escassez destes prevalece.
No terminal rodoviário, outra batalha se inicia na fila para o ônibus 0.111, com destino ao Complexo Penitenciário da Papuda. De novo, assentos são disputados como tesouro raro. Mais uma hora de viagem, ciclo se repete. Conversas paralelas preenchem ambiente, várias pessoas compartilham queixas acerca da vida adulta, algumas ficam imersas em mundos próprios com fones de ouvido e ainda há quem busque tirar cochilo fugaz
No meio desse caos, eu, na época criança de cinco anos, permanecia radiante de felicidade. Cada percurso era antecipação de um encontro especial com meu pai. Coração transbordava de alegria, eclipsado temporariamente pelas adversidades do cotidiano.
Neste labirinto de trilhos e destinos, o transporte público se torna mais do que simples rota, é narrativa entrelaçada com as vidas daqueles que o utilizam. Apertos, diálogos, viagens são capítulos únicos na história urbana e a espera por um assento vira metáfora para batalhas diárias. Minha satisfação infantil representa a esperança que persiste nas sombras do cotidiano tumultuado.
Ao chegar ao destino, o desembarque do ônibus desencadeia muitas emoções. Uma multidão vestida de branco preenche cenário, enquanto barulho de conversas altas e discussões cria sinfonia caótica. Ansiedade, como sombra persistente, toma conta de mim. Mas a felicidade é evidente no rosto. O motivo é claro: são necessários de sete a quinze dias para poder visitar os detentos.
O ritual começa ao pagar aluguel para a inspeção das bolsas. Em seguida, enfrenta-se fila, duas horas que se perdem em interações com desconhecidos, na tentativa de tornar o tempo menos penoso. Hora de vê-lo. Sacolas são entregues para serem examinadas, é necessário garantir que nenhum entorpecente as acompanhe. O policial, meticuloso, inspeciona cada item; suspiro de alívio, tudo está em ordem.
Com documentos apresentados, consegui passar pelos portões e divisórias até chegar à sala que se tornou o palco do momento mais aterrorizante. Para uma criança de cinco anos, enfrentar a revista minuciosa da agente penitenciária é terrível. Choro desgastante começa como se fosse a primeira vez naquele lugar. “Tire a blusa, agora a calça, chinelos.” Instruções prosseguem e a fragilidade da situação se intensifica. Exame coreografado pelos desígnios da policial se desenrola.
Em uma cadeira, com inocência marcada pela idade, sentia-me desconcertada. Ato de despir-se para a revista transcende o físico, é uma exposição crua da humanidade diante do sistema penitenciário.
Essa narrativa não é mero relatório de procedimento padrão, mas um mergulho nas complexidades emocionais de uma experiência única. Eu, entre lágrimas e desconforto, personifico a resistência na presença de infortúnios, enquanto a agente, de acordo com seu papel, também enfrenta a tarefa. Este ensaio vai além dos portões que se abrem, diz respeito às barreiras emocionais insistentes que delimitam jornada de resiliência e vulnerabilidade, convergem em dança intrincada.
Quando os portões são abertos, corro para abraçar meu pai. Alguns minutos de choro, de saudade e alegria. Pergunta como foi a semana e acerca da escola, respondo que está tudo bem; tento fugir do assunto escolar, pois meu rendimento caiu bastante após ele ser preso. Reuniões de pais e mestres criaram espaços vazios, marcados por ausência paterna. Assuntos fluem enquanto caminho ao lado dele pelo pátio, onde vários detentos estão reunidos com familiares.
Na minha cabeça penso em como poderia tirá-lo desse lugar, olho muros altos com cercas elétricas e arame farpado. Enquanto analiso o cenário, me deparo com bolinhas jogadas pelo pátio, são papelotes de drogas, lançadas de uma parte do complexo para outra. A situação me assusta, por mais que o sistema de segurança exista, pessoas conseguem levar drogas para dentro das penitenciárias.
Multidão se aglomera para receber marmitas na hora do almoço. A comida, servida em recipientes de alumínio, parece desprovida de sabor e carinho, aparenta ser restos destinados a animais. Fico apreensiva com a ideia de que meu pai ingere essa refeição todos os dias, pondero quantos anos ainda enfrentará essa dura realidade.
De repente, são quatro horas da tarde. Embora não haja relógios visíveis, a notícia é proclamada pelos policiais, visita encerrada. Isso desencadeia episódio de angústia, ter que ir embora e não poder levar meu pai comigo, choro de maneira incontrolável, sem conseguir largar do abraço profundo. Minha mãe tenta me convencer de que na próxima semana poderei visitar o papai de novo, porém sou incapaz de me conter. Todos caminham até o portão de entrada que virou de saída. Na minha cabeça, aqueles policiais são maldosos. Ao atravessar corredores e salas em que entrei com entusiasmo, saí agora envolta em lágrimas e algumas pessoas que passam por mim tentam me consolar, isso é necessário para aprender a ser uma pessoa melhor, elas dizem, mas não concordo.
Chego ao portão oficial de saída, agora é pegar a bolsa que deixamos no aluguel e esperar o mesmo ônibus; nada diferente, fila grande, rumo à rodoviária, choro continua, febre emocional é companheira constante desses momentos, junto com dor de cabeça, como de costume. Por mais que o mal-estar passe, o vazio toma conta de mim.
Durante o período de reclusão, nós duas achamos que afundaríamos sem ele, mas fomos capazes de seguir a vida. Minha mãe continuou com trabalho em casa, dessa vez como a única provedora. Ao longo dos meses, meu pai cumpriu a pena e saiu do cárcere com outra perspectiva. Abriu uma loja de decoração, estava determinado a mudar de vida.
Tal experiência me ajudou a compreender todas as camadas da música “A vida é desafio”, do grupo Racionais MC’s. Ela reflete a respeito de sonhos e aspirações, de modo especial em uma sociedade que restringe oportunidades. Destaca o desejo por sucesso, riqueza e felicidade, bem como os possíveis obstáculos no caminho. Apesar das dificuldades, enfatiza a importância de manter a fé e crer que sonhos são necessários para manter pessoas vivas.
Ao longo da canção, há um chamado para superar desafios e buscar crescimento pessoal. A letra destaca a necessidade de acreditar em si, apoiar família e comunidade, priorizar educação e trabalho duro; a música também reconhece as escolhas complexas feitas pelos indivíduos, por exemplo, recorrer ao crime como solução rápida para problemas financeiros, apesar das consequências negativas.
“A vida é desafio” serve como lembrete de que a vida é batalha contínua e cada transtorno sofrido é oportunidade de crescimento e aprendizado. Ela defende que as pessoas busquem futuro melhor, resistam às influências negativas da sociedade e se apeguem aos sonhos como força motriz para as próprias vidas.
Meu pai sempre deu o melhor de si, mas, no final, se afundou — na verdade, todos nós. Espero que esse ensaio seja combustível para sempre seguir adiante; não voltar ao passado, mas entendê-lo como lição valiosa.
Izadora Lemos, 19
Publicidade e Propaganda
