Coragem, domicílio próprio

 

Queria que acontecesse de maneira natural, como raio em tempestade, estrondoso e esperado. Sábado era dia reservado para faxina. Acima do chão escorregadio e abaixo do teto da casa de mãe, surgiu o momento ideal para se aproximar, como quem não quer nada, e soltar, “mãe, sou gay”. Ela ficou imóvel. Nenhuma surpresa, de ambas as partes. Olhou para mim, pensou bem, respondeu que me amava (o que nunca duvidei) e fez monólogo com “filho, seja forte”. Eu tinha quinze anos. Ser forte tornou-se égide para sobreviver. Coragem virou indumentária. Tamanha covardia exigir resiliência. Adolescente deve se divertir, deleitar-se com o que a vida tem de bom. Cedo entendi, diante de olhares fuziladores do mundo: sou oposto do normal, fora da regra e do armário.

Duro é observar condição própria. Surge necessidade de enxergar a verdade, assunto sensível para mim. Como antropólogo que viaja para longe com objetivo de estudar cultura diferente, viajo para dentro de mim em busca de coragem para desvelar o que me cerca. Encontro-me, então, em autoetnografia. Imprimo (sobre)vivência sob crivo de olhar pessoal.

Coragem. Forte moral perante riscos; bravura, intrepidez, perigos. Espírito firme para enfrentar situação emocional ou moralmente difícil. Definição consolidada. Primeiro termo que proferi. Todos os dias, ao sair de casa, a utilizo como terra firme, que sustenta e se torna habitação. Me ponho à prova com recorrência. Saio e entro de forma constante no armário. Algumas vezes, me puxo para dentro dele, em outras, me encaixotam lá. Sou falho por temer perigos. Estive enclausurado tantas vezes que conheço o interior como lugar natal, útero gerador que um dia me entregou segurança. Faço tudo para sobreviver, mesmo que signifique me trancafiar de vez em quando.

Tal qual rótulo na embalagem de produto em prateleira de loja, tenho nome, preço, validade, entre outros. Nome: Gay. Preço, depende: homem ou mulher da relação. Vencimento: quando velhice bater à porta. Fã de alguma diva pop. Toque feminino: conheço tudo do universo delas. Acima de tudo: bem-humorado. Faço rir! Perfeito. De todas as informações deste rótulo, a pior: temo o calendário. À medida que envelheço, perco (mais ainda) valor e direito de receber afeto. Deveria manter pose, afinal, amor é privilégio! Parecer mimado é indesejável. De fato gosto de alguma diva pop. Medo do tempo, talvez. São as únicas informações reais da ficha.

Me acostumei com palavras: preconceito, violência, homofobia, solidão. Habituei-me com cada uma dessas como quem divide apartamento. Normalizei. Algumas vezes, jantamos na mesma mesa, discutimos. Quando estou farto delas, me tranco no quarto. Desassocio. Crio fantasia. Fortaleza impenetrável. Se significar força, ótimo, se é fraqueza fugir do assassino, não dou a mínima. Sou de carne, mereço descanso. Prefiro não bater de frente, ser afrontoso. Nessa história, sou o último a morrer.

Fardo. Na definição, objeto talvez pesado. Portável. Responsabilidade. Impossível definir a situação queer como objeto. Certamente, posso defini-la como sufocante e sobrecarregada. A Bíblia diz que Deus não dá jugo que não posso carregar; por outro lado, se ele me dá permissão, peço licença para ensaiar a respeito de suas palavras. De fato, Deus não me dá o que não suporto, mas concede fardos pesados. Recorro à fé para milagre, oro que ombros sejam fortalecidos. Assim, posso aguentar o peso quase esmagador de ser quem sou. Onde vivo estão dispostos a encher bolsos de pedras. Presenciei irmãos e irmãs serem esmagados por toneladas. Os considero fortes e corajosos, lutaram até o limite. Quero que valha a pena o sacrifício.

Acaba o dia, vem a hora preciosa! Chego em casa e sinto ter carregado o mundo nas costas doloridas. Talvez o tenha feito. Pesado, pareço-me com Atlas, Titã. Fadigado, permito-me retirar o globo de coragem, rótulo de força, dos ombros. Derrubo-o como mochila em qualquer canto conveniente. Carne humana é fadada ao cansaço e está condenada a morrer. Moldado a essa imagem, naquele momento, rendo-me ao vacilo. Contemplo, com semblante cansado, o espelho que ali reflete alma. Sou tentado a adentrar portões do paraíso, realidade paralela, fazer nesse domínio morada permanente. Porém, devo basear-me no real. Voltarei a vestir fardo pesado pela manhã no outro dia, céu é responsabilidade da ficção. Não há domicílio fixo no inexistente e, quando olho para mim, encontro na coragem concreto e verdadeiro lar.

 

Matheus Ferreira, 22
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