
Coração que pedra carrega
No prefácio do poema “Jerusalém”, William Blake se refere às rochas como pais dos homens. Não definiria melhor, em minha experiência. Esses minerais sempre me foram conhecidos e, com o tempo, tornaram-se extensões de quem sou. Em meu vocabulário, pedras são sinônimos de pertencimento, lar e família.
Como consequência de ser filha de geólogo, minérios sempre estiveram presentes dentro de casa, seja em livros de estantes ou decorações de móveis; todo momento com meu pai era marcado por imagens de rochas e cristais. Quando criança, cores e formas me instigavam, ao passo que aflorou interesse pelos minerais, não por nomenclaturas ou origens, mas pela vivacidade das configurações. Em contraste, como adulta escrevo este ensaio a respeito de uma pedra em particular — além de características físicas ou geomorfológicas, pela simbologia que representa.
Antes, a pedra era de minha mãe, que esperou dezoito anos para me presentear. Foi a primeira herança de família que recebi, e sei que nada alcançará essa dádiva. Nunca tinha sentido tantas emoções ao mesmo tempo; tristeza encontrava alegria e abandono conhecia pertencimento. Nesse instante, possessão física se tornou espiritual e o que antes era coincidência transformou-se em destino.
É curioso o quanto de mim é representado nessa pedra oval e bicolor que se chama bolivianita. O que mais me cativa a respeito dela é o nome, porque revela origem, paralela à minha. Tons contrastantes de amarelo e roxo prendem o olhar, porém, são ofuscados pela palavra que a denomina, “Bolívia”. Para mim, esse país é sinônimo de vida, é parte mais basilar de quem sou. Quando olho para esse mineral, vejo além da composição física e enxergo ruas nas quais brincava e caminhos que percorria.
De acordo com Anatomia da crítica, livro de Northrop Frye, dentro dos arquétipos literários pedras são utilizadas para representar ruas, edifícios e cidades. E o que é tudo isso, além de manifestação da vida? Designam lugares em que matéria inorgânica encontra orgânica e assim, formam memórias, associações, significados e referências.
A bolivianita é muito mais que minério, para mim: representa a materialização de lembranças. Graças a ela sou capaz de encaixar um país dentro de dois centímetros, é objeto cuja mera existência me permite ter ao alcance parte da vida que ficou para trás. É memória familiar no meio do turbilhão de emoções causadas pela perda. O valor que possui não vem da preciosidade, mas da ternura evocada sempre que a tenho em mãos, do verdadeiro significado que essa pedra carrega.
Em mim, a bolivianita reflete essa convergência do passado e do presente, da lembrança que se mantém e da experiência transcorrida. Serve como âncora, prova física e incontestável de algum fragmento do meu ser que ainda pertence a esse país que não visito há dez anos, mas que no coração chamo de meu.
Ana Clara Andrade, 19 Audiovisual
