Cabelo cheio de medo

 

Vou morrer. Não tenho certeza se será hoje, mas vão me enterrar, é inevitável. Entretanto, usarei black power no caixão, quero ficar bonito nesse dia. Caso morra, espero que seja perto dos 90 anos e de forma tranquila. Mesmo com esse desejo pessoal, penso na possibilidade de ser assassinado e me enterrarem antes disso. Esse pensamento era muito comum na Califórnia, em 1960 e 1970, pois foi período de mobilizações da população afrodescendente pela igualdade de direitos civis. Naquela época, se você tivesse esse tipo de cabelo deveria andar armado, porque seria alvo de preconceitos, discriminações e balas. Por isso, era necessário se proteger.

Será possível esse tipo de situação acontecer no Brasil? Espero que não, pois tenho sorte de ter esse cabelo, mas azar de não ter armas. Existem desvantagens em possuir este black power, além de andar na rua desarmado; pentear é aterrorizante, por exemplo. Acordo duas horas mais cedo por causa disso. Depois de arrumar, preciso ficar atento, porque qualquer ventinho consegue produzir bagunça. Sempre tenho arsenal de respostas prontas, pois algumas vezes desconhecidos me abordam na rua com intenção de falar comigo. É comum dizerem: “Que cabelão, tinha um igual!”. São comentários do cotidiano; não nego, gosto dessas situações, acho graça.

Se os incidentes acontecem, falo obrigado e elogio o cabelo da pessoa. Em geral funciona, digo isso sempre que possível. Dá certo com quem tem algum fio na cabeça. Se você é careca e fala comigo, fica sem resposta. Entretanto, escuto diversos comentários desagradáveis, como, por exemplo, sou muito sujo, moro na rua, uso drogas etc. Mesmo assim, estou acostumado, sabe por quê? É simples, amo este cabelo, nunca tive tanta autoestima na vida, sou feliz e contente com ele.

Muitas pessoas me elogiam na rua, maioria são homens que tiveram black power na juventude e hoje são carecas. Me preocupo de ficar assim algum dia. Mulheres com esse corte nunca vieram falar comigo. Caso aconteça, criei ótimas respostas. Longe de mim destruir expectativas, mas não vou te contar. Sempre chamo atenção fora de casa, me sinto confiante. Talvez por isso gosto tanto do estilo, é chamativo. Reparo nos olhares, porém, muitos são estranhos; parecem sentir nojo e repulsa. Essas situações costumam acontecer em transportes públicos.

Também gosto de variar. No começo do ano de 2023, fiz tranças. Existem muitas formas de entrelaçar o cabelo. No caso, tinha feito nagô: são aquelas feitas na raiz, bem presas no couro cabeludo. Foi maravilhoso, porque nunca era necessário acordar mais cedo por causa do black power, tudo ficava fácil, mas é algo muito caro, alguns lugares cobram cento e cinquenta reais, sempre achei esse valor abusivo. Porém, tenho amigas trancistas, e elas pedem apenas setenta reais pelo trabalho. Mesmo assim, o preço é alto, prefiro fazer compras, motivo pelo qual quase não uso esse estilo. Além disso, dona Rosália, minha vovó, acha que fico melhor sem, confio no julgamento dela.

Dona Rosália, senhora religiosa e conservadora de setenta e três anos de idade, com pouco mais de metro e meio de altura, me inspira, porque odeia black power. Ela me diverte, pois sempre negava que gostava de cabelo grande, então, todo dia, eu perguntava se sou bonito desse jeito. O limite foi dreadlocks, que não coloquei porque seria expulso da casa dela. Quero muito fazer, mas antes preciso morar sozinho. Expliquei incontáveis vezes, sou popular por causa desse corte, porém, estou cansado de tentar convencê-la, agora, apenas ignoro. Na verdade, acho tudo o que ela faz é apenas preocupação, vovó se importa demais comigo, amo essa característica dela.

Dito tudo isso, no dia 9 de dezembro de 2023 vou raspar o cabelo, por dois motivos. Primeiro, chamo muita atenção. Se tivesse algum defeito em ter esse cabelo, seria a discrição. Por hora, tenho que passar despercebido e ter mais foco na formação acadêmica. Segundo, tê-lo é trabalhoso demais, chega de perder várias horas do dia por causa dele, necessito de tempo dessa relação, me sinto sufocado e preciso cuidar de outras pessoas, como dona Rosália. Essa decisão é difícil, mas também necessária, pois cedo ou tarde cortaria. Entretanto, ainda penso em morrer de black power, não posso abandoná-lo, terei ele comigo de volta no caixão.

Na verdade, talvez raspar seja exagerado, muito extremo. Cortarei, isso é fato, mas não significa que jamais usarei black power de novo, pois ainda tenho muito amor por ele. Penso na possibilidade dele se afastar, acho justo, porque quero ficar assim por alguns meses. Contudo, existem grandes chances do cabelo ter raiva de mim, em outras palavras. Se estarei careca no meu próprio funeral, essa decisão vai depender dele e de mais ninguém. Além disso, se os fios da cabeça não crescerem depois do dia 9 de dezembro, me sentirei culpado. Caso aconteça, lembrarei do monumento: ele viveu nesta cabeça, com sorte, ainda vou reencontrá-lo no enterro.

Insisto na ideia de morrer com esse cabelo por causa de Abidias, meu avô. Ele faleceu no dia 3 de janeiro de 2022. Desde esse dia, cuido da dona Rosália. Abidias nunca teve black power, mas não fazia críticas, tínhamos respeito um pelo outro. No funeral, me lembro de vários detalhes, vovô estava corado e calmo. Depois me dei conta de que também vou morrer, gostaria de ser eternizado como símbolo de resistência, autenticidade e beleza, da mesma forma que líderes e revolucionários do movimento negro foram. Se Abidias estivesse vivo, me apoiaria.

Vinícius de Oliveira, 20
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