Sol número 90
Antonieta completou 67 anos na semana passada. Aquela famosa crise da meia idade a atingiu em cheio, embora fosse tarde para isso. Aposentadoria era mais atraente quando passava dias atrás da mesa, encarregada de lidar com pessoas grossas e sem noção. Tédio, não conseguia sentir outra coisa. Porta entreaberta, segundo andar, quarto antigo do Nicolas (primogênito), caixas empilhadas, “o que guardei nelas?”. Cadernos de capa dura, algum tempo necessário para entender do que se tratava: detestava aquela gente, mas renderam bons personagens, talvez devesse voltar a fazer isso, aqui deve ser ainda melhor, em Luziânia só tinha quem morasse nas fazendas próximas, pouco material para explorar, se bem que sempre preferiu conversar com animais.
Estava entretida com memórias desenterradas sem qualquer preparo emocional, palavras e ideias começaram a saltar e se sobrepor. Papel, lápis, borracha, tempo livre, “consigo retornar aos velhos hábitos?”. Mediano, mas eficiente para teste:
Aiyra Lua tinha cabelos lisos, tão escuros quanto carvão, olhos amendoados cor de mel, cuja função favorita era observar estrelas. Lia sobre astronomia, sonhava em viver desse costume. Estar sozinha, melhor momento do dia, pensava sobre família, sobretudo na vontade de partir daquela cidadezinha interiorana. Foi assim que conheceu Emílio, jovem rapaz de 21 anos, poucos meses mais velho, tinha como objetivo levá-la para São Paulo, lugar mais avançado em relação a essas pesquisas, partiram três semanas depois de se conhecerem, alegres e esperançosos, música alta, sol forte, gargalhadas ou todo esse conjunto causou distração, não viram o carro, também não foram vistos… Difícil matá-los ou achar final decente, surpreendente para história. Nem tudo precisa ser finalizado, melhor deixar quieto. Passou das 21 horas, precisava tomar banho e comer, entretanto, adormeceu em cobertas quentes naquela noite fria de outubro.
Luz intensa, esqueceu de fechar cortinas, levantou tonta, com fome, barriga faltava gritar por alimento, “essas escadas sempre foram tão longas?”, geladeira vazia, limão e queijo, igual quando morava sozinha em quitinete no centro. Precisava ir ao mercado, vestimenta inadequada, mas é velha, passou da época de se importar.
Moça interessante, apenas uma cor envolvia corpo negro, perdida, sem dúvida, compras imaturas para idade ou ousadas, talvez merecesse ser eternizada. Se comesse rápido poderia escrever antes de perder ideias formuladas durante tempo na fila. Após café da manhã realizou anotações:
Verde, nos cabelos e na roupa, pintura monocromática cobria pele escura, contraste com olhar triste e sorriso gentil. Andava como se desconhecesse qualquer destino, mas estivesse animada para viver aventuras, tão nova e tão fascinante, tinha em posse algumas cartas de desenhos antigos, longínquos ao tempo de infância, cuja utilidade parecia fútil ou nenhuma…
Odiava visitas tanto quanto não as receber. Batidas fortes na porta interromperam raciocínio, “por que essas crianças acham divertido perturbar idosa sem objetivos de vida?”. Tudo era tão chato, descontrolado, mas previsível. Caminhar por Bragança Paulista, seria estranho repetir hábitos cultivados com marido depois de se tornar viúva seis meses atrás, conseguia superar, ele gostaria disso. Pegou ônibus vazio para Praça Nove de Julho, onde havia celebrado 45 anos de casada em janeiro, levou caderno para caso de inventar algo novo.
Saudades do filho, do esposo morto, não tinha amigos, “o que fiz para terminar assim?”, pensamentos falados em voz alta traduziam vontade de conversar, última vez foi com médico, depois de ser encaminhada ao hospital devido a dancinha realizada pelo fim eterno da rotina como bancária, pena se tratar de ortopedista e não de terapeuta.
Assento de madeira parece limpo, pipoca doce estava gostosa e açucarada em exagero, sortuda, teste para diabetes deu negativo. Queria escrever, único jeito de ter controle ou companhia, procurou por criaturas incomuns, imaginou por instantes o que teria sido de Zé se fosse outra coisa que não pipoqueiro. Folha riscada com grafite, letra quase ilegível, mas futuro inédito foi escrito:
Cabeça brilhante em virtude da ausência capilar, equações no quadro. José Brito é matemático, mas 75% da biblioteca pessoal tem livros literários. Rastros de criança prodígio espalhados por todo ambiente, desempenho impecável em qualquer área fez com que ambicionasse prêmios dos mais diversos. Olhos cor de floresta marejados, cálculos estampados à frente sequer faziam jus ao motivo da emoção, telefonema recebido 30 minutos antes anunciou: “Você ganhou Prêmio Nobel de Literatura”. Coração disparado, braço repleto de formigas invisíveis, permaneceu imóvel, como quem raciocinava se deveria abrir espumante ou preparar miojo. Analisava situação perplexo, não poderia mais negar que também era escritor.
“É isso”, cada angústia morreu diante do propósito, “posso ser escritora, resolveria tudo”, teria algo para fazer antes de enrugar igual uva passa ou virar pó, alguma coisa para amar sem necessidade de retribuição. Voltou para residência descrente da descoberta realizada no lugar juramentado como capital nacional da linguiça.
Escreveu variedade de obras durante 89 sóis, quando recebeu notícia animadora. Mensagem do Nicolas, Helena nasceu, agora era avó, “ele homenageou a irmã, criei um grande homem”, e logo transformou família em personagens:
Gustavo tinha 41 anos e cheirava ao sofá da tia, nunca se fixava nos empregos, porque marido era carpinteiro e sustentava a casa. Tinham uma filha, Helena, criança travessa, cabelos pretos, olhos de gato. Observava diálogo amoroso dos pais com atenção, enquanto projetos trazidos do trabalho eram estudados. Adorava brincar na rua com vizinhos maiores. Certo dia, decidiu correr pela pista atrás da bola vermelha, ninguém notou fuga das pernas que com seis anos de idade pararam de se mover.
Se perdeu perante o texto, choro espesso, tentava criar justificativas, porém admitiu para si que, mesmo depois de 33 anos, falecimento da filha doía como evento recente. Papéis rasgados, lápis, caneta, fósforo. “Serei uma avó boa para ela, cuidadosa como mãe que não fui.” Antonieta jurou nunca mais se distrair em empreendimentos toscos, isso incluiu carreira de autora.
Iane Lima, 18 Audiovisual
													