Pensar em dizer

 

Quatro paredes de apartamento sujeitam sossego para senhora que não se preocupa mais com companhias corriqueiras. Dona Zefa, desde nova, gostava de palavras e por isso virou professora, mas palavras nunca saíram da mente, sempre observava tudo ao redor e nunca se atrevia a falar. Agora, em certa idade, não teme o silêncio, a mente mesmo desgastada continua em liberdade. Foi professora infantil por muitos anos, sempre preferiu ser próxima de seres doces e ingênuos.

Cleusa visitava diariamente amigas. Dizia isso para ir à casa da amante, que precisava dela não apenas pelo afeto, mas para viver. O relacionamento com Zefa começou quando lecionavam. Zefa não sai mais de casa e Cleusa a ajuda com o que pode. A razão do isolamento nem mesmo Cleusa entendia, tudo que importava era fazer com que Zefa não precisasse sair e enfrentar o mundo.

A despensa estava vazia, a linha que usava para bordar tinha acabado, faltava remédio e em alguns momentos o silêncio era mais alto que o comum. Por vários dias Cleusa não apareceu como de costume para ir à feira e fazer companhia. Zefa por muito tempo não se sentia tão só e a preocupação piorava a cada minuto: Cleusa não entrava pela porta com a sacola cheia de capim-cidreira que tanto gostavam. Pensou em ligar, mas nem mesmo lembrava número de telefone, não havia sequer em algum lugar anotado, elas nunca se falavam por celular. Tudo que podia fazer era esperar…

A televisão nunca tinha ficado tanto tempo ligada, conversas imorais dos vizinhos de repente pareciam perturbar menos que o habitual, varanda com mesa de canto e dois acentos parou de ter presença. O apartamento que antes parecia um refúgio tornou-se detenção.

Esperar tornou-se inviável. Os anos que passou sem pisar fora pareciam agora ser vozes na cabeça. Acordava cedo e encarava a maçaneta por horas, e durante a espera imaginava todas as complicações que teria na hora de sair do prédio, usar transporte, pedir informações, imaginava até o que diria a Cleusa quando a visse. Imaginava que ela ficaria orgulhosa se conseguisse. Tomou coragem e saiu com trocados para o endereço que recordava ser o de Cleusa.

Dona Zefa desceu do prédio trêmula e torcia para que não lhe dirigissem a palavra, não respondia de volta quando a cumprimentavam, pois temia que a simpatia se tornasse maior a conversa. Tinha a impressão que todos que a viram a julgavam. No ponto de ônibus ficou envergonhada de ter que pedir a alguém para ler o letreiro por ela, e com muita peleja conseguiu que alguém o fizesse. Quando o ônibus parou, queria voltar para casa, duvidava se conseguiria chegar de fato, mas entrou, mesmo com medo. Sentou-se ao lado de uma moça para perguntar onde poderia descer, mas ela estava com fones de ouvido e ficou receosa de interrompê-la. Repassava a pergunta na cabeça antes de perguntar e contava até dez para criar coragem. Recebeu ajuda e desceu, dessa vez depois de muito tempo não se sentia covarde, imaginava que Cleusa talvez quisesse que vencesse seus medos e ansiedades.

Sentia-se nostálgica. Fazia décadas que não visitava a casa da parceira. Durante o trajeto refletia como agiria quando chegasse, pensava como falaria com a filha de Cleusa, a quem não via há muito tempo e considerava família. Assim que chegou ao prédio lembrou-se que conhecia o porteiro, e temia ser rude em não manter prosa. Ele a conheceu de longe e parecia contente em vê-la. Durante a conversa deu um abraço e disse que sentia por sua amiga. Zefa não entendeu, estava nervosa, apenas acenou com a cabeça e seguiu o rumo. No elevador, começou a pensar no que diria, mas sentiu que não precisava se preparar. 

Chegou ao andar, tomou fôlego e foi em direção ao apartamento de Cleusa. A filha atendeu e deu a notícia.

Leandro Salomão, 19
Publicidade e Propaganda
Pular para o conteúdo