Onde as cópias vivem: escrito e roubado por Guilherme Maia

 

 

O escritor argentino Jorge Luis Borges, no conto “O Imortal”, descreve a vida do soldado romano Marcus Flaminius Rufus, a eventual conquista da imortalidade e subsequentes acontecimentos. Ao decorrer da existência imortal do legionário, em circunstâncias que podem ser entendidas como expressão da ideia de Eterno Retorno, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, vive episódios que são, basicamente, repetições de eventos previamente ocorridos ou escritos. A vida de Marcus se baseia em recorrências de histórias, o que faz o seu relato ser acusado de plágio, ao final do conto. Porém, Borges escolheu muito bem a citação de Francis Bacon para expressar um contraponto: “Salomão disse: Não há nada de novo sobre a terra. Assim como Platão teve uma ideia, que todo conhecimento não era senão lembrança, assim Salomão sentenciou, que toda novidade não é senão esquecimento”.

Com isso em mente, abre-se uma discussão; no mundo terreno, o que é realmente original? Qual arte ou pedaço de arte pode ser identificado de tal maneira? Como caracterizar a filmografia de Tarantino, que admitiu “roubar” de outros filmes, mas ainda é tido como um dos cineastas mais originais da sua geração por críticos de cinema? Ainda na arte contemporânea, o que são os populares trabalhos de rap que utilizam pedaços de músicas antigas para produzir novas, as mais rentáveis hoje no mercado? Roubo, cópia, inspiração, inovação e originalidade. São diversas as palavras que podem ser usadas, porém quais são justas?

É preciso dizer que toda produção artística carrega, por querer ou não, alguma fonte de inspiração. Prestar homenagens aos filmes ou músicas que são respeitados e amados é uma legítima forma de produzir arte. Aquilo fala com você e você quer falar de volta com aquilo. A base fundadora é a paixão por algo que te tocou, é algo mais complexo e poderoso. Contudo, trazer algo novo para isso é essencial; pegue como exemplo um filme do anteriormente mencionado Tarantino.

O filme Cães de aluguel foi acusado de copiar, às vezes cena por cena, o filme chinês Lung foo fung wan (em português, o título é Perigo extremo). As cenas, principalmente mais ao final do filme, são realmente parecidas. O diálogo que menciona Madonna e a música “Like a Virgin”, além do igualmente famoso impasse mexicano, são apenas duas entre mais cenas facilmente acusáveis de plágio. Então como eles atingem o status de original? É o sentido que Tarantino traz para as cenas que fazem delas algo completamente diferente e conceitualmente antagônicas. O filme de Ringo Lam assumiu um caráter realístico para a obra, cruel como o mundo real e que tem como temas família e lealdade. Por contraste, Cães de aluguel tem formato teatral, claustrofóbico, cenas de humor negro e diálogos sagazes e longos. Tarantino de fato rouba de Lam, mas emprega um sentido único que somente ele poderia dar, porque a paixão e a visão artística é algo excepcional. A maneira como se vê o mundo é ímpar para cada ser humano, as experiências que carregam não podem nunca ser replicadas.

Esse exemplo não é único. Tarantino cava fundo no acervo da memória cinematográfica, para achar aquilo que ninguém lembra ou está adormecido. Pelos labirínticos corredores cheios de prateleiras abarrotadas de poeirentas caixas VHS da locadora onde trabalha antes de virar diretor de cinema, colhe um verdadeiro banquete de referências que se expandem através das décadas. Você pega um monte de referências sobre filmes antigos espalhados através das décadas, mastiga tudo e cospe numa imagem recriada sob a própria imagem semelhança. É um esforço digno, parece fácil, mas não é tanto que é o contrário do que virou rotineiro para a indústria cinematográfica.

Não faltam filmes atuais que vivem da referência vazia pela referência. Querem que você assista ao filme, olhe para a cena, a reconheça de algum lugar na área rasa da mente, e pela energia emocional que apenas a nostalgia pode oferecer, aponte para a tela e fale: “Entendi essa referência”. Então prossegue a dizer de onde elas vêm, afinal o que vale é a menção. Não existe vontade de criar algo novo, apenas demonstra que você sabe alguma coisa.

Interessante notar que o roubo alheio atravessa todas as artes. Picasso uma vez disse: “Bons artistas copiam; grandes artistas roubam”. Os rappers do século 21 são a demonstração mais sincera e bem sucedida daquilo que Picasso compreendia como grandes artistas; em vez de copiar, foram lá e simplesmente roubaram o pedaço de música que queriam, e montaram uma nova em cima. Isso, que chamamos de sample, ao menos hoje em dia, não é roubo; o direito da música usada é devidamente pago, na grande maioria dos casos. No encarte do CD, ou onde quer que as informações sobre uma referida música estejam anunciadas, os dados da música usada estão, claramente, impressos. Para qualquer pessoa nos quatro cantos do mundo ver, a informação está ali. Tarantino não goza dessa sorte — ou azar, depende do ponto de vista —, as tramoias são sutis e sorrateiras.

Mas um dia isso foi verdade. O álbum Paul’s Boutique, dos Beastie Boys, que “sampleou” mais de cem músicas diferentes sem pedir os direitos de uso e pagar um mísero centavo por isso, é um exemplo. Dezenas e dezenas de músicas de diferentes décadas (anos 1950, 1960, 1970 e até 1980) apareceram de novo para o mundo e ganharam vida pelas mãos de três garotos judeus franzinos do Brooklyn. A nova arte estava estabelecida. Você vai cada vez mais fundo nisso, e acha uma banda como The Books. Para a maioria das músicas deles, ninguém sequer imagina de onde os samples vieram, tão obscuros eram os cortes originais; mas essa é a ideia… O que estava perdido e morto ressuscita e volta à tona. O material dito como original não perde valor, muito pelo contrário; ele ganha ainda mais grandeza, passa a ser cultuado.

Mas aqui vai um caso curioso da primeira arte, que pode ajudar a elucidar um pouco mais essa questão.

Em 2008, a banda britânica Coldplay foi acusada de plagiar a música instrumental “If I Could Fly”, do guitarrista americano Joe Satriani. Satriani alegou que a música “Viva la vida” copiava partes substanciais da sua composição original, e meses depois as partes chegaram a um acordo fora dos tribunais. Um par de anos depois, em um documentário para a televisão sueca, o professor de música Lawrence Ferrara demonstrou que ambas as composições, tidas por ambos os compositores como originais, na verdade, partilhavam de grande semelhança melódica com a música “Se tu m’ami” do compositor italiano Giovanni Battista Pergolesi, que morreu no ano de 1736.

Vê como originalidade é conceito maleável. É uma situação que cai no cone da memória do filósofo, escritor e diplomata francês Henri Bergson, que aprendi através de Borges. A memória coletiva é como um cone de cabeça para baixo; quanto mais fundo no cone, mais difícil de acessar a memória e mais raras elas são; quanto mais acima, mais fácil fica de reaver as memórias e elas existem em maior quantidade. As coisas estão aí para ser usadas. Ter competência não para criar, mas para lembrar melhor. Talvez exista um quê de sorte nessa mistura. Competência para fazer bem feito, e sorte para ninguém perceber.

Nada é criado em vácuo. O que poderia ser original foi criado em tempos imemoriais. Para os jovens escritores e artistas por aí, preocupados demais com o que se inspiram, perdidos nas possíveis questões legais da manufatura e na possível taxação do material como inautêntico, posso deixar aqui o conselho da pintora americana Elaine Sturtevant que visava o futuro da arte no geral: “Refazer, reutilizar, remontar, recombinar — esse é o caminho a seguir”.

 

Guilherme Maia, 22
Química Tecnológica
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