
Nausica do vale das traças
A vontade de passar o tempo e o desejo por literatura me levaram de encontro até aquela dedicatória.
Foi em um sebo no comércio logo acima da universidade. Você passa pelos últimos prédios de aula, atravessa a faixa, uma escola do ensino médio e o sinal de trânsito. O sebo ocupa toda a face norte do segundo bloco, pequeno prédio comercial de forma quadrada, que fica de frente para a rua. Nos fundos da loja ao lado do banheiro fica a sessão de literatura clássica. Procuro na letra “S”, e encontro Sonetos, por Shakespeare. Escrito de forma leve e prazerosa, considerei que seria boa escolha para os meus objetivos.
Como qualquer leitor a quem o livro há muito tempo lhe interessa, começo a folhear as páginas ou ao menos tenho a intenção. Logo na folha de rosto me detenho. Ali, como é muito habitual nos livros que são dados de presente, encontro uma dedicatória.
A caligrafia é leve e elegante, tão bonita que parecia decorar a página. Ao passar os olhos por ela, inevitavelmente, li a mensagem:
“À minha querida Nausica, na falta de palavras que lhe façam justiça.”
Assinava apenas como “O”.
Até esse momento, não me ocorreu que poderia ser algo mais do que cotidiano. Dedicatórias como essa havia muitas por aí. A caligrafia era, claro, fantástica, como se praticada por séculos, mas tão somente isso.
Devo dizer que foi na segunda dedicatória, achada por coincidência, que as coisas começaram a me chamar atenção. Procurava por mais livros que me falassem de amor — todos têm fases românticas — quando encontrei.
Ostentava a mesma caligrafia. A mensagem, contudo, era mais elaborada e apaixonante. O remetente tomava gosto pela coisa, percebia-se que não conseguia disfarçar por menos que seja o amor ultrajante que guardava. O espírito de vida era reproduzido perfeitamente pelas letras e palavras escolhidas que funcionavam quase como autorretrato.
Acompanhar a evolução dessa paixão aos olhos daquele homem me parecia empreitada valiosa demais para se ignorar. Era como ler um livro inteiro sem sair da primeira página. À medida que achava mais livros que pertenceram ao remetente — parecia haver lotes inteiros naquele sebo —, o sentimento que crescia em mim era incrível. Eu era o aventureiro que desenterrava um amor há muito fossilizado. Pincelava livros enterrados em camadas de estantes. A sensação de atuar como genuíno arqueólogo era auxiliada pelo fato de que aqueles livros serem sempre muito velhos, todos de primeira edição. A vivência da empreitada despertava emoções contagiantes em mim, algo que me era negado há tempos.
As declarações ficaram cada vez mais pomposas, pareciam querer saltar da página para abraçar e acariciar a destinatária. Pelo conteúdo, acredito que tamanha inspiração era oriunda, provavelmente, de um fervor proibido por quaisquer que sejam as condições. Era admirável ver a evolução.
Após essa série de livros que compartilhavam tais dedicatórias apaixonadas, entro em um ponto de virada. Até aquele momento era muito fácil de achar o próximo livro porque todos se encaixavam no mesmo nicho literário; eram clássicos da literatura mundial que portavam o amor, da mesma maneira romântico e de certa maneira feliz. Porém, em determinado momento, fui incapaz de achar mais livros que fossem nessa direção. Então me arrisquei em algo mais pessimista e trágico. Qual foi a minha surpresa ao palpite se demonstrar certeiro e assim voltei a entrar no mesmo ritmo febril de antes.
Contudo, as dedicatórias que achei a partir daí eram deveras diferentes das que me deleitavam anteriormente. A caligrafia que mencionei, antes exuberante, perdia aos poucos o brilho. Desprovida da bela forma, assumia aos poucos aparência de garrancho. As mensagens também perdiam beleza, cada vez mais aflitas e de muita afobação, tristeza e melancolia. Transmitiam a emoção de um espírito infeliz.
O morro dos ventos uivantes, Anna Karenina, Os sofrimentos do jovem Werther foram algumas das escolhas feitas. É fácil notar que o rumo da história não era favorável ao casal. E à medida que os exemplares passavam, uma sensação esquisita crescia no meu âmago. Podia sentir que algo morria em poucas palavras. Muito me gostaria que fosse a chama que não existia mais naquele relacionamento. Mas ela continuava firme e forte, com a diferença que agora ela crescia apenas de um lado, em vez de dois.
Eu observava, incapaz e impotente, o remetente morrer diante dos meus olhos.
Mais uma vez entrei em um beco sem saída. Os livros pararam de aparecer. A seca, diante de mim, foi extensa dessa vez, minutos viraram horas e nenhuma mensagem que pudesse me acalmar. Procurei pelos mais diversos livros que achei que poderiam carregar aquilo que eu esperava. A procura, porém, foi em vão. Exausto, me sentei na primeira cadeira disponível e me pus a refletir; a decepção da jornada interrompida me deixou sem energia, paralisado e sem gana para continuar.
Quando finalmente juntei força suficiente para me levantar e ir embora, vinha na direção do caixa, perto do qual estou sentado, uma mulher que sob olhar mais atento, deve estar no meio dos quarenta anos, talvez até cinquenta. Contudo a jovialidade e vigor transbordavam no andar e na aparência. A vontade de parar tudo e conversar com ela meramente para ouvir o que tinha a dizer era instantânea. Mas o que realmente me chamou atenção foi o livro que ela carregava em mãos. A Odisseia.
A minha inocência era, mais do que nunca, evidente. Como poderia esquecer que Nausica era personagem da Odisseia, e que “O.” deveria ser nada menos do que Odisseu. O alívio me contagia: Claro que se tivesse que haver mais uma mensagem, que houvesse naquele livro.
Quando ela passa por mim, pergunto:
— Posso ver esse livro? — Ela olha para mim e num primeiro momento se mostra reticente, o pedido não lhe agrada. Parecia por qualquer razão muito afeita ao livro. Insisti. — É bem rápido, prometo.
Ela finalmente aceita o pedido. Me entrega o livro e imediatamente olho na primeira página, onde a mensagem, quase ilegível, se apresenta:
“Nunca se esqueça de mim, pois eu te dei a vida.”
Este foi o último pedido que Nausica fez a Odisseu no momento em que ele rumava de volta para o lar, na Odisseia. Quando finalmente chegou em casa, Odisseu falou tudo para Penélope, sua mulher. Contou sobre as aventuras, os amigos e as mulheres que encontrou. Contou sobre tudo e todos, menos sobre Nausica. Me pergunto se cresceu um afeto mais profundo do que ele poderia imaginar e manter sob controle. O que quer que tenha sido, tenho certeza que ele nunca a esqueceu.
Mas agora os papéis se inverteram. Era Odisseu que pedia para Nausica não esquecê-lo. Era ele quem suplicava para não ser esquecido por alguém que lhe tinha sido especial. Ela deu vida a ele ao salvá-lo de um náufrago, e ele deu vida a ela sendo o primeiro amor. Mas ele sabia que ela era apenas uma menina, alguém que começava a sonhar, por que se prender a sentimentos tão imaturos? E os livros vendidos ao sebo me davam respostas às quais eu não sabia como reagir.
O final amargo daquele épico me deixou com esta comoção estranha no peito. Como reagir ao desespero do homem diante da amada? Em retrospecto parece normal que ela tivesse se permitido descobrir o mundo à volta, natural não ficar preso ao primeiro amor. Mas o desejo do remetente era implacável e a frustração no final se assemelhava a um pedido à beira da morte. Pena não é o tipo de sentimento que gosto de ter, mas era a única coisa que sentia por ele.
Não me cabia fazer mais nada ali, tais eventos tinham acontecido há muito tempo, não poderia operar nada para mudá-los. O final de Odisseu e o começo de Nausica estavam decretados. Desejos tinham sido deixados de lado ou se realizado.
Espero algum dia ter a oportunidade de escrever essa história. Assim não poderei esquecer Nausica ou Odisseu, eles que urgem para não serem esquecidos. Era o único favor que eu poderia lhes fazer.
Guilherme Maia, 22
Química Tecnológica
