
Deixa para depois
Aparentemente, procrastinação é o mal do novo século, conclusão que formulei após ler declaração de Fuschia Sirois, professora de psicologia, ao site do jornal inglês The Guardian. Ao lado da depressão e do sedentarismo, os três formam uma santa trindade que guia a juventude. Sou extremamente devota a sua santidade, pois não consigo abdicar de ensinamentos um dia sequer. Não que isso seja bom ou ruim, é meramente incômodo.
A pior parte desse ritual — vou chamá-lo assim às vezes, fica mais emocionante — sem dúvida, é o começo. Ele merece o melhor lugar do camarote, aquele que oferece vista perfeita do circo em chamas, que fica perto o suficiente do aquecedor, mas que também é acolhido pela brisa suave que adentra o ambiente. Não é o principal motivo das minhas delongas, mas tem forte influência nesse processo. Como começar ou nunca saber se as palavras escolhidas estão bem colocadas ou podem melhorar são dúvidas perturbadoras demais para mim, por isso, largo mão desse estorvo e deixo tudo para mais tarde. Bem, quase tudo. Poucas coisas conseguem captar meu entusiasmo.
Essa mania de deixar afazeres para depois muitas vezes é confundida com preguiça. Ontem mesmo fui acusada de tal crime. Estava com dificuldade para continuar este ensaio, não sabia mais que rumo tomar, então um amigo indicou Canoas e marolas, de João Gilberto Noll, com narrativa que promete abordar esse pecado capital de maneira desconstruída. Parei na metade do livro e estou com preguiça de continuar. Não sei se essa estratégia foi escolhida pelo autor, mas teve grande eficácia para moral da história — irei confirmar tal hipótese quando chegar ao fim da leitura. Me senti uma verdadeira Bartleby — protagonista de Bartleby, o escrivão, obra de Herman Melville, que se nega a fazer qualquer coisa e sempre responde ao chefe, “Acho melhor não” — o que não faz jus ao que vim tecer aqui. É verdade que com frequência digo “prefiro não fazer isso”, porém, não tenho aversão ao trabalho, na última hora, sempre acabo por fazer. O senso de responsabilidade que atrelo à tarefa é motivo suficiente para garantir conclusão dentro do prazo estipulado.
Falar assim faz parecer que há momento de salvação; quem dera isso fosse verdade. O esgotamento do tempo para fazer algo nada mais é que incentivo, comburente para esse ciclo chamado procrastinação. Concluir alguma tarefa no último minuto é extremamente prazeroso, principalmente porque fica um trabalho de alta qualidade. Obter como resultado obra-prima produzida em momento de tensão é praticamente materialização de verdadeira epifania. A adrenalina gerada por esse desafio faz tudo valer a pena. Bela mentira que conto para pessoas ao meu redor…
Não consigo gostar da maioria das coisas que produzo, por isso procrastinar faz parte da minha vida. Usar falta de tempo como desculpa para não conseguir fazer algo bom, que fique dentro dos meus parâmetros de qualidade, é uma estratégia brilhante, mesmo que me corroa aos poucos. O medo iminente do fracasso tem enorme poder sobre mim, embora não me preocupe com opinião alheia. Exatamente, pouco me importa opinião de desconhecidos. Essa inquietação que possuo vem da necessidade de impressionar algumas pessoas — pouquíssimas, na verdade — por quem tenho grande admiração.
Agora consigo entender porque não há muitas obras sobre procrastinação; tema difícil de esmiuçar. Às vezes dá vontade de ser como Gustave Flaubert, que gastava dias para revisar seus textos, apenas para achar métrica perfeita das frases e fazer uma obra-prima. Quem sabe, nesse momento, me encontre no início dessa jornada de transformação. Tive misericórdia de mim. Procrastinei? Claro, por duas semanas. Porém, me permiti escrever este ensaio durante três dias. É um avanço.
Dito dessa maneira, faço parecer que procrastinação é algo terrível, o oitavo pecado capital, destruidor dos bons costumes. Tudo balela. Não passa de um vício que, conforme nível de dependência, destrói vidas de pobres infelizes. Não ter controle sobre ele, isso sim, é terrível. Falta de domínio em qualquer aspecto da vida é avassaladora, principalmente quando se trata de algo que possui poder de moldar obrigações cotidianas. Tenho vontade de ter rotina, experimentar sensação de calma ao produzir algo, dar tempo ao tempo, como dizem. Talvez, se estiver disposta, posso tentar trazer essa mudança para minha vida, mesmo que seja contraditório, afinal, sou grande fã da procrastinação.
Por enquanto, vou deixar isso para depois.
Mariane Magalhães, 19 Publicidade e Propaganda
