Carta ao passado

 

Avistamos terra nova, após longa viagem que durou pouco mais de um mês. Durante a marinhagem, dei conta de algo estranho, como se o céu, as águas e o clima mudassem de repente. Acredito que o capitão-mor desta expedição tenha errado o caminho à Índia, coisa que Cabral não deixa acontecer desde que o conheço como navegador.

Algum tempo depois, ancoramos na dita ilha e algo estranho era notável. Dali avistamos homens, que andavam pela terra antes desconhecida. Haviam construções estranhas e todos olhavam com descortesia para nossa embarcação, como se nos expulsassem com olhares. O capitão-mor mandou em terra Nicolau Coelho para fazer vista do lugar e, antes que pudesse dizer ao menos quem era, um homem gritou do cais as seguintes palavras:

— O que pensam que ‘tão’ fazendo?

Logo, assustei-me. Só poderia delirar por efeito da viagem, mas o homem falava português.

Fiz sinal a Pedro Álvares Cabral, o capitão-mor,  para ele mesmo assumir a situação, o que fez de imediato. Após se apresentar e dizer que foi enviado pelo próprio D. Manuel I de Portugal, uma risada alta ecoou pela ilha, o que fez o comandante do navio se contorcer de raiva. Tão pouco simpático, o homem que nos confrontava do cais, gritou mais uma vez:

— Primeiro de abril foi a 21 dias atrás! Saiam logo daqui ou vou expulsar vocês com uso de força.

Pelas minhas contas, a data estava correta, então retruquei:

— Sim, senhor, hoje é 22 de abril de 1500, estamos cientes.

Ao que parecia ser um surto de impaciência, o homem vociferou ainda mais alto:

— 1500? Acho que vocês se perderam no tempo. Estamos em 2022, seus idiotas!

O silêncio predominou na nossa embarcação. Ora pois, não poderia acreditar em tal barbaridade.

O mar quebrava na costa e começava a anoitecer. A comunicação entre os homens da terra e nós, viajantes, não estava proveitosa a mais de uma hora. Sugeri que seria melhor fazermos as pazes e esclarecer que foi tudo um mal-entendido, mas a essa altura, Cabral e o homem estavam para se estapear. Durante toda discussão, percebi que não havia compreensão de proveito, apesar de ambos aparentarem falar a mesma língua. Logo, me surgiram dúvidas.

Após um bom tempo, os dois lados estavam exaustos e cederam à conciliação. O homem, cujo nome era Severino, sugeriu levantarmos âncora e fazer vela até uma região localizada ao Norte, onde poderíamos achar alguma abrigada e bom pouso, não que nos minguasse, mas por aqui nos acertamos. Antes de irmos, Severino nos aconselhou a deixarmos de falar bobeiras, como se tudo que dissemos até agora fora mentira. Ele se ofereceu a mostrar o lugar, que nos foi dito ser chamado de Santa Cruz Cabrália, localizada na Bahia.

Pela manhã, acordamos com sons altos de pessoas aparentemente a se banhar nas águas em que aportamos. Usavam roupas que cobriam apenas as suas vergonhas e nadavam pela borda do imenso mar. Enquanto a tripulação de homens vinda de Portugal observava a euforia, uma mulher que corria pela praia, veio até nós e defrontou-se, num tom de desafio. Questionou o que estávamos a olhar, como se a assediássemos. Falei para a rapariga ficar calma, mas acredito que tenha dito algo errado, pois em questão de segundos, uma balbúrdia se formou ao nosso redor. Severino vinha de encontro conosco e cessou a briga. Entramos nas barracas que foram abrigo durante a noite para os navegadores e ele nos explicou tudo, com uma espantosa paciência, coisa que não era notável no primeiro encontro que tivemos.

Começou a dizer que estávamos no Brasil, país antes colonizado por Portugal e descoberto pelo nosso capitão, o que não podíamos acreditar. Como era possível algo acontecer de tal maneira, quando estamos ali naquele momento? A esposa de Severino estava presente também e, como historiadora, ajudou o marido a nos elucidar. Ela afirmou que não descobrimos exatamente as terras, pois haviam pessoas nativas do país quando chegamos em 1500.

Para provar que aquilo tudo não era apenas brincadeira, Maria, mulher de Severino, nos mostrou a data num aparelho estranho, que aparentemente a maioria das pessoas nos tempos atuais usavam. Era chamado de celular e, ao fazer o mesmo, mostramos alguns documentos da época de expedições marítimas, o que chocou os dois. Houve grande êxtase por parte da historiadora, ao ver o começo da carta escrita por mim, Pero Vaz de Caminha, direcionada ao imperador de Portugal sobre a viagem à Índia. Também estava surpreso com toda a cronologia desse país, que responde muitas das dúvidas que tive, como o fato de eles falarem a mesma língua que meus compatriotas.

Passamos horas atentos às explanações, tanto que o tempo decorreu e não nos atentamos. Era chegado o horário de nos deitar, pois os céus nos indicavam ter passado da meia noite. Nos despedimos de Severino e Maria, que nos entregaram alguns desjejuns, em muito boa hora, não me aguentava em esperar mais um pouco, estava faminto.

Pela manhã, os dois camaradas vieram ao encontro da comitiva portuguesa novamente e nos entregaram algumas roupas, para que passássemos despercebidos pela multidão que encontraríamos, pois era hora de conhecer o Brasil pessoalmente e o que ele se tornou 522 anos depois do dito descobrimento. Prontos, fomos até uma rua repleta de comercialização, cheguei até a pensar se não estava na Índia realmente. Queria experimentar todas as comidas que se vendia, mas não aceitavam réis. Maria nos explicou sobre economia e, quando se para pensar, os preços estavam exorbitantes, mesmo para mim, que saí de um passado distante.

Durante a expedição, aprendemos muito sobre a forma de governo e até sobre a diferença de cultura entre Portugal e Brasil, que apesar de colonizado, é diferente de qualquer nação. Ficamos cientes também sobre a rivalidade entre ambos os países, pelos eventos recorrentes da história.

No anoitecer desse mesmo dia, decidi que continuaria a carta, mas não tenho ciência de como a enviarei, já que estamos anos à frente do ponto de partida de onde este escrito deveria chegar.

Começo então a situar nosso rei sobre a atual conjuntura: “Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.”

Explico cada detalhe, minunciosamente, sobre o erro da frota, a terra nova, os habitantes e tudo que vimos aqui. Não se escapa uma única esmiúce e então, finalizo: “…E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo”.

No outro dia, Cabral conversava sobre voltar para a terra natal. Concordava com ele, mas estava receoso sobre como o faria. Alguns navegantes que vieram conosco verificavam as embarcações, como se a única coisa que faltava para darmos partida era eu. Estava tão encabulado com tudo que vivemos, que parte de mim se recusava a abandonar o feito. Mas, preciso entregar pessoalmente esta carta ao rei, que irá ficar surpreso em descobrir o que um erro de percurso cometeu.

Nos despedimos daqueles que se tornaram amigos, Severino e Maria, que nos deram bússola, mapa e localizador, para garantir que voltemos pela mesma rota e atravessar o salto no tempo pelo qual chegamos aqui. Ao nos despedir da terra, olhávamos a mesma desaparecer pelo horizonte. Minha mente não parava de pensar em tudo que aconteceu, mas agora só espero que possa chegar com essa carta aos tempos que me são designados por nascença.

Atentei-me ao fato dos colegas que fizemos não nos ter levado a sério, apesar de ajudarem durante toda estadia da comitiva. Acredito que nem nós fomos realistas, pois essa ocorrência era algo improvável até poucos dias atrás.

Era chegada a hora de partir. Na metade da viagem, percebi algo mudar, como antes. Os céus transpareciam uma cor flamejante, o mar abrandou-se e senti a brisa calma das eras passadas, logo, nossos corações se acalmaram. Estávamos de volta a 1500.

Ágatha Costa, 18
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